Procura por moda fitness evangélica cresce mais de 400% em vendas online na Shopee
Mais composta, sem decote e com tamanho abaixo do joelho: entenda por que o conceito é uma tendência crescente entre as cristãs
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Priscila Natividade
priscila.oliveira@redebahia.com.br
Nunca foi questão de sedentarismo, falta de tempo ou porque não gostava de praticar atividade física. Muito pelo contrário: o cross training é importante para a recepcionista Bruna de Brito, de 22 anos. No entanto, por ser cristã, muitas vezes ela se sentia incomodada em usar uma roupa mais justa na hora de ir treinar.
“Em inúmeros momentos, eu evitava ir por conta da roupa e, quando ia, pegava camisetas velhas do meu pai e usava. Com ordem e decência, eu busco não escandalizar e ser prudente com as roupas que visto”.
Até que Bruna viu alguém na academia usando uma saia mais longa com legging e foi atrás de lojas que vendessem igual. Ao invés do traje fit comum, uma versão mais composta, sem decotes e com o comprimento abaixo do joelho. É cada vez mais comum ver esse look comportado - e por que não dizer, discreto - no ambiente das academias. A moda agradou as cristãs e tem nome: fitness evangélica.
Segundo dados da Shopee - um dos maiores marketplaces internacionais em operação no Brasil - atualmente, são mais de 170 vendedores cadastrados com termos que se aplicam ao tema “moda fitness evangélica”. No período de um ano, por exemplo, termos como “moda evangélica academia” cresceram mais de 400%. A “saia calça fitness evangélica” teve aumento de mais de 270% e “legging academia com saia evangélica” mais de 600%.
São mais de 300 opções de produtos relacionados a essa definição na plataforma. Entre os estados que mais concentram essas ofertas no e-commerce estão São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais na liderança, seguidos por Bahia, Ceará e Paraná.
Na contramão de um padrão, que, geralmente, é muito mais sobre exaltar cada curva do corpo (para além do conforto), o conceito é uma tendência crescente e deve continuar nesse ritmo. “A gente ainda consegue identificar os evangélicos pelas roupas que eles usam. Já presenciei na academia alguns jovens vestidos com camisas escritos ‘atletas de Cristo’ e ‘esportistas de Cristo’. O mercado evangélico não para de crescer. Existe uma capacidade de pautar os valores culturais, políticos e até um certo ‘ethos na economia’”, analisa o professor de Marketing Religioso da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Ricardo Hida.
Uma das características que mais chama atenção, ainda de acordo com Hilda, é, além do senso de pertencimento, a capacidade que esse mercado tem de se retroalimentar: “São valores bem próprios e um orgulho em demonstrá-los. As pessoas ficam imaginando que colocar lá na porta da lojinha ‘Deus é Fiel’ é só uma forma de divulgação de fé, mas, na verdade, não é. É uma identificação”.
Ricardo Hida
" As pessoas ficam imaginando que colocar lá na porta da lojinha ‘Deus é Fiel’ é só uma forma de divulgação de fé, mas, na verdade, não é. É uma identificação"
Antes de ser adepta da moda fitness evangélica, Bruna diz que se sentia não só desconfortável, mas também exposta. “Meu corpo ficava muito à mostra. As roupas contribuíam para isso com malhas finas e, como dizem por aí, do tipo ‘aumenta bumbum’. Encontrei conjuntos confortáveis feitos de tecidos que não marcam a parte íntima e que têm de todos os tamanhos. Valeu muito a pena, me proporcionou uma leveza na consciência”, acrescenta.
Estilo discreto
O IBGE investiga religião apenas no Censo Demográfico e os dados de 2022 com este recorte ainda não foram divulgados. No entanto, com base no levantamento de 2010, na Bahia, existiam mais de 2,4 milhões de pessoas evangélicas. No Brasil, são 42,2 milhões. A proporção de evangélicos na população do estado era de 17,41%, a 20ª maior do país - no Brasil, 22,16% da população se considerava evangélica. Já em Salvador, existiam 524.286 pessoas evangélicas.
Os números dão uma dimensão do tamanho do mercado consumidor que os cristãos são capazes de movimentar. Ainda conforme o professor de Marketing Religioso da ESPM, Ricardo Hida, o que se mostra como tendência no momento está muito vinculado ao universo gospel norte-americano. Existe, sim, uma oportunidade de negócio, tendo em vista a expansão significativa do número de evangélicos no Brasil.
“Quem aponta bastante essas tendências, a meu ver, atualmente, são as igrejas Renascer em Cristo, Bola de Neve e a Igreja Lagoinha. É visível o número de influenciadoras digitais, por exemplo, que querem mostrar que o ser ‘crente’ não é ser alguém fora de moda ou usar roupas anacrônicas, que você pode estar bonita e de forma recatada, transmitir elegância”, comenta.
Com mais de 374 mil seguidores, a doméstica Marluce Severina dos Santos, ou melhor, a ‘Irmã do Crossfit’ (@irmamarlucesantosof), não só levanta 100 kg no cross, mas atrai o interesse de confecções de moda fitness evangélica em parcerias nas redes sociais. Já são quatro marcas que ela divulga no seu perfil: Honras, Use Equilibrium, Epulari e Rose Fitness.
“É um número absurdo de mensagens que a gente recebe do povo perguntando de onde é a roupa que estou usando nos vídeos”. Apesar de não revelar quanto ganha com as publicações, Irmã Marluce tem postagens com mais de 266 mil curtidas e 31,9 mil respostas.
Antes do traje mais recatado, Irmã Marluce ia para a academia com a saia que costumava usar na igreja. “Não deixava de ir para a academia, fazia os exercícios com uma blusa bem comprida e saia jeans, não ficava exposta. Sou uma senhora idosa e não me sentia bem com aquele ‘shortinho’ e um ‘topinho’. Fui procurando na internet e descobri as roupas. Comecei a usar e outras irmãs que praticam caminhada e academia foram aderindo também”, conta.
A médica Elisyanne Gleyce Morais conheceu a moda fitness evangélica assim: pelas influenciadoras evangélicas. “Ficava com medo de fazer algum movimento e acabar mostrando demais. Eu usava legging e amarrava um agasalho na cintura para disfarçar. Eu sou adventista e a recomendação é se vestir com decência, basta ter bom senso”. Ela chega a gastar R$ 200 com peças nesse estilo: “Faço questão de malhar tanto pela saúde como estética. Muitas tinham vergonha de ir para a academia por não encontrar uma roupa adequada. Percebo até pessoas mais velhas aderindo a esse estilo”, afirma.
Mas existem diferenças entre a moda modesta e a moda evangélica, como explica a professora da área de moda do Senac São José do Rio Preto (SP), Aline Eloa Crespi. A primeira se refere a uma forma mais discreta de se vestir. Já a segunda tem efetivamente uma ligação com a doutrina religiosa. “A moda evangélica no Brasil evoluiu para um estilo mais atualizado e sofisticado. Se vestir bem tornou-se prioridade para esse público que busca roupas elegantes, comportadas, modernas, duráveis, tecidos de boa qualidade e peças que estejam em conformidade com os padrões evangélicos”.
Uma categoria que reflete não apenas uma preferência estética, mas também um estilo de vida. “Existem muitas diferenças nas regras de vestuário nas diversas igrejas, contudo, em todas há um consenso: a preferência por roupas mais comportadas. Decotes menos ousados, pouco uso de transparências, saias com fendas pequenas e vestidos longos com tecidos mais estruturados, evitando marcar a silhueta. Uma coleção de moda pensada para esse público precisa fugir do sensual”.
A auxiliar de classe Júlia Elen diz que busca “pureza, delicadeza, sensibilidade e elegância” ao escolher uma roupa, mesmo que seja para ir à academia. “Sempre me visto com pudor e modéstia. Na hora de ir para a academia, geralmente, improvisava com alguma outra peça para ficar decente. Além disso, creio que, quando visto peças de moda fitness evangélica, não vejo olhares ou ouço comentários desconfortáveis dentro e fora da academia. Não é uma garantia, mas uma prevenção”.
Estilo discreto
A moda evangélica vem conquistando mesmo o público cristão, diante do crescente número de marcas e lojas voltadas para esse estilo recatado, sem, no entanto, deixar de trazer alguma tendência. Proprietária da loja de moda fitness Id Fit (@idmodafitness), Islei do Nascimento não demorou muito para perceber o quanto as evangélicas são clientes fiéis.
“Notei que tinha algumas clientes que iam até a loja e pediam uma saia mais comprida ou uma calça que não marcasse tanto, uma blusa que escondesse as partes íntimas. Foi aí que comecei a observar que eu tinha público para esse tipo de segmento. Comecei a investir em peças maiores, mais largas, em calças com saia, tapa-bumbum, shorts-saia que pegassem o joelho, camisas folgadas”.
A Id Fit tem modelos nos tamanhos PP ao GG, além de peças plus size, tanto para quem quer destacar mais o corpo como para quem prefere algo mais discreto. A loja física fica no Shopping Matatu, mas Islei também faz vendas online. “Comecei a Id Fit em 2010 com R$ 200 e uma sacola. Tudo fitness é muito focado em mulheres mais magras, que mostram mais a barriga, calças que dividem mais, tipo 'empina bumbum'. Hoje eu tenho esse tipo de produto? Tenho. Mas eu vi que posso atingir vários tipos de mulheres que gostam de cuidar da sua saúde e do seu bem-estar”.
Islei do Nascimento
"Tudo fitness é muito focado em mulheres mais magras, que mostram mais a barriga, calças que dividem mais, tipo 'empina bumbum'. Hoje eu tenho esse tipo de produto? Tenho. Mas eu vi que posso atingir vários tipos de mulheres que gostam de cuidar da sua saúde"
Quase 40% dessas vendas são para clientes evangélicos. “Como também sou frequentadora de igreja evangélica, passei a atrair esse público e ver o potencial dessa clientela. São mulheres que gostam de calças com a cintura mais alta, tops compridos. Coletes supermodernos são sucesso de vendas, assim como o short saia comprido. É o nosso carro-chefe”.
A marca baiana Bella Fit Moda Evangélica (@bellafit.modaevangelica) é mais uma dessas que surgiram porque a sua proprietária tinha dificuldade de encontrar roupas de academia com essa proposta mais comportada. “Através dessa experiência pessoal, enxerguei a mesma necessidade em outras irmãs da igreja e comecei a investir nesse ramo”, conta Ingred Dantas, que começou o negócio em 2019, no município de Sobradinho, com entregas via e-commerce para todo o Brasil. “A maioria das clientes são mulheres evangélicas, porém, percebo também uma porcentagem de pessoas que não são evangélicas, mas preferem se vestir de forma composta”.
Ingred Dantas
"A maioria das clientes são mulheres evangélicas, porém, percebo também uma porcentagem de pessoas que não são evangélicas, mas preferem de se vestir de forma composta"
Também atuando nesse nicho, a proprietária da Andreia Almeida Confecções (@andreiaalmeidaofc) diz que os homens estão chegando nesse segmento, ainda que as mulheres respondam pela grande parcela nas vendas. “Nosso foco é atender o público feminino, mas existem peças para o público masculino, inclusive, temos uma linha de camisetas que podem ser usadas tanto no dia a dia quanto na hora dos treinos”, destaca Andreia Almeida.
Algumas novidades incluem o uso de tecidos tecnológicos que oferecem conforto e respirabilidade, designs versáteis, mais estampas e cores modernas que agregam estilo às peças sem comprometer a modéstia. A confecção é do município de Sarandi, no Paraná, mas recebe muitos pedidos de clientes baianas via loja virtual. A marca produz 100 peças por mês e fatura algo em torno de R$ 6 mil. “A modelagem das peças é cuidadosamente pensada. Ficamos felizes demais por mesmo tão longe conseguirmos alcançar esse consumidor através da internet”, comemora.
Analista técnica do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae-BA), Shirlei Santos ressalta que o perfil desse público, no geral, é de clientes bem exigentes. “Prezam pela qualidade, buscam empresas que trabalham de forma honesta, com postura muito próxima ao que eles acreditam como verdade”.
Outro ponto que a analista cita está no fato de que os evangélicos costumam consumir de empresas onde seus proprietários e funcionários ostentam a mesma escolha religiosa. “É comum que busquem negócios em que os donos se consideram cristãos, por princípios e até como forma de fortalecimento. Se consomem, consomem os produtos e serviços um dos outros”, complementa.
Shirlei Santos
"É comum que busquem negócios em que os donos se consideram cristãos, por princípios e até como forma de fortalecimento. Se consomem, consomem os produtos e serviços um dos outros"
Caráter modesto
Enquanto as lojas virtuais e os pequenos negócios estão atentos a esse mercado, grandes marcas fitness como a Oxer informou à reportagem que não tinha peças específicas nessa modelagem. “Entendemos que a nossa marca tem peças e possibilidades para todos”, justificou em nota. Por um bom tempo, as mulheres religiosas se viram mal representadas e até mesmo excluídas pelas lojas convencionais, que não vendiam produtos que se encaixavam nas doutrinas das igrejas.
Para a pesquisadora do Departamento de Administração e Economia da Universidade Federal de Lavras (DAE - UFLA), Juliana Becheri, o consumo de roupas com caráter modesto sempre foi retratado de forma estereotipada e visto como negativo. “A moda procurou retratar inovação, empoderamento, luxo, hedonismo - valores que não parecem se relacionar com os conceitos religiosos pentecostais. Por esse motivo, é provável que grandes corporações invistam no nicho de uma forma mais ‘maquiada’ utilizando terminologias como moda executiva e com um escopo menor de peças”.
Juliana reforça que os pequenos empreendedores estão mais dispostos a fazer essa junção e construir uma marca voltada para o público evangélico. Muitas empresas voltadas para este nicho surgiram através dos próprios membros dessas igrejas que conheciam de perto as dores de consumo das fiéis. “Porém, é preciso ficar de olhos abertos com a Shein, que tem uma forte comercialização de itens modestos, muitos deles baseados em looks de doramas coreanos, que é uma paixão das jovens evangélicas”, destaca Juliana responsável pelo estudo 'A construção do mercado da moda evangélica: arranjos e práticas no cenário brasileiro’, ao lado dos pesquisadores Elisa Cozadi e Paulo Henrique Leme.
Juliana Becheri
"Porém, é preciso ficar de olhos abertos com a Shein, que tem uma forte comercialização de itens modestos, muitos deles baseados em looks de doramas coreanos, que é uma paixão das jovens evangélicas"
As roupas precisam transmitir a identidade de que essa é uma mulher religiosa, ao mesmo tempo, descolada e moderna, que consome vários tipos de informações sobre cuidados com a casa, família, corpo e beleza. “É interessante destacar que as ascensões das igrejas neopentecostais também favoreceram esse desejo de ‘estar no mundo’ através da teologia da prosperidade. Assim, ao evangélico é permitido enriquecer, comprar, consumir”, analisa.
DEZ LOJAS VIRTUAIS ONDE ENCONTRAR PEÇAS FITNESS EVANGÉLICAS
1. Honras Moda Fitness Modesta - @honrasoficial
2. Use Equilibrium - @use_equilibrium
3. Epulari - www.useepulari.com.br
4. Rose Fitness - www.rosefitness.com.br
5. Joyaly Fashion - www.joyfashion.com.br
6. Thaís Rodrigues - www.thaisrodrigues.com.br
7. Ki Bella Moda Evangélica - www.kibellamodaevangelica.com.br
8. Via Evangélica - www.viaevangelica.com.br
9. Juliana Perfeito Fio Moda Fitness Evangélica - julianaperfeitofio.com.br
10. Sali Moda Fitness e Evangélica - @sali.oficial