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Carolina Cerqueira
Publicado em 21 de abril de 2024 às 05:00
Em cinco minutos caminhando pelas ruas de Lisboa, difícil não escutar a voz de um brasileiro. Difícil também encontrar um que não tenha sofrido ou ao menos conheça alguma vítima de xenofobia. >
Os ataques podem ser diretos, com agressões físicas ou frases em paredes e muros desejando a eles a morte. Ou ainda velados, com um discurso protecionista contra o uso do idioma do Brasil em escolas e universidades.>
Para a carioca Marcela Porto, de 28 anos, que mora em Lisboa há 1 ano e 6 meses, o comportamento vem de “uma mistura de raiva com inveja”. >
“Eles consomem muito conteúdo brasileiro. Os mais novos consomem muito e os portugueses mais velhos, mais conservadores, se sentem feridos, como se estivessem perdendo espaço porque seus filhos ou netos estão falando expressões em português do Brasil.">
Uma postagem feita no Twitter (antigo X) pela página "Invictus Portucale”, de 10 de abril, compartilha o vídeo em que um brasileiro diz que os portugueses mais jovens, influenciados por conteúdos brasileiros nas redes sociais, estão adotando o português do Brasil como idioma.>
Palavras como "geladeira" e "ônibus" já passam a ser usadas no lugar de "frigorífico" e "autocarro", respectivamente. >
O perfil aponta que, “aos poucos a língua de Camões que é o português europeu é assassinada pela matriz judaico-cristã”. >
Um dos comentários ironiza: “Luccas Neto foi a maior vingança dos brasileiros contra Portugal. Isso deveria ser debatido na ONU”. >
Luccas Neto é um dos youtubers brasileiros assistidos por crianças portuguesas. Ele costuma fazer shows pelo país europeu e tem novas apresentações por lá previstas para setembro deste ano. >
Uma professora brasileira de Santa Catarina de 32 anos que mora em Lisboa e preferiu não se identificar, conta os bastidores da escola onde seu filho estuda. >
“Em uma reunião com familiares, uma professora disse que as crianças que falavam português do Brasil precisavam aprender o ‘português correto’”, lembra. >
Um estudante de Direito de 28 anos, que nasceu em São Paulo e mora em Belo Horizonte (MG), que também preferiu não se identificar, conta os bastidores da universidade onde estudou, em Coimbra, entre setembro de 2023 e fevereiro de 2024. >
“Em grupos da faculdade, vários portugueses, em vários momentos, falavam para os estrangeiros que o português do Brasil nem era uma língua, era um dialeto errado.” >
Na Universidade de Lisboa, conhecida por recepcionar intercambistas, onde Marcela Porto estuda, enquanto alguns professores aceitam trabalhos em inglês e espanhol, outros não querem saber do português do Brasil. >
“Eu tinha chegado em Portugal há poucas semanas e era a única brasileira da turma. A professora estava falando sobre o trabalho final e perguntou: ‘Cadê a brasileira?’. Eu levantei a mão e ela disse: ‘Você não pode escrever em português brasileiro porque aqui só escrevemos em português de Portugal’. E ela fez a mesma coisa nas duas aulas seguintes que tivemos. Foi constrangedor”, relata. >
Para a doutora em Língua e Cultura e professora de Linguística da UFRB Amanda Reis, o preconceito linguístico é um dos desdobramentos da xenofobia.>
"Vivemos num mundo brancocêntrico e eurocêntrico, regido pelas leis do capitalismo. O Brasil, na visão dos portugueses, é um país explorado, subdesenvolvido, caracterizado pela desigualdade. Esse cenário reflete na língua por questões históricas", analisa. >
“Eles acreditam que o português que eles falam é superior, é original, é puro, e o nosso sofre influência africana e indígena. Mas não existe nada que torne uma variedade superior a outra ou até digna de protecionismo”, explica Amanda Reis. >
“As línguas mudam, é natural que os contatos linguísticos aconteçam. Desses contatos, vão surgir variações linguísticas, que são as diferentes formas coexistindo. É isso que faz com que a língua permaneça viva, ela se reestrutura conforme as necessidades comunicativas dos falantes”, finaliza a especialista.>