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O que os confrontos Marçal x Datena e Trump x Kamala dizem sobre o futuro dos debates


 

Entenda a história do formato e como o exemplo dos Estados Unidos pode influenciar o Brasil

  • Thais Borges

  • Carolina Cerqueira

Publicado em 22/09/2024 às 05:00:00
Kamala Harris vai enfrentar Donald Trump. Crédito: Shutterstock

“Hoje em dia, para ganhar voto no Brasil é fácil, é só xingar o outro, quem xingar mais ganha”. Esse é um trecho da fala do economista e ex-BBB conhecido como Gil do Vigor, feita em um vídeo publicado por ele no Instagram com o objetivo de comentar sobre o debate entre candidatos à prefeitura de São Paulo na TV Cultura.

Gil classificou o episódio como uma “vergonha” e questionou: “Não tem mais debate de política de ideias. O que está acontecendo? Aonde vamos parar? O Brasil merece muito mais do que isso. Onde estão as ideias?”.

Para o cientista político Fábio Vasconcellos, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), no entanto, o cenário não é, por completo, uma novidade. “Os debates na televisão são lugar de imagem, de performance. Não é o lugar da argumentação política profunda e da extrema racionalidade”, destaca o pós-doutorando na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Nos Estados Unidos, onde os debates começaram antes do que no Brasil, o debate entre Richard Nixon e John Kennedy, em 1960, reforça o que diz o cientista político. “Os eleitores que assistiram pela TV consideraram que Kennedy foi melhor. Já os que ouviram pelo rádio consideraram que Nixon foi melhor. É uma indicação de que o rádio destaca os argumentos”, coloca Vasconcellos.

Para o jornalista Ricardo Ishmael, que tem experiência em mediação de debates, a televisão tem influência sobre os estilos de campanhas eleitorais. “O debate televisivo, por exemplo, tornou-se um evento grandioso que mobiliza candidatos, assessores, marqueteiros. Talvez seja, de toda a corrida eleitoral, o momento mais aguardado”, destaca.

Existem diferentes estruturas de debate, mas, em geral, como explica o cientista político Cláudio André de Souza, um mediador conduz a interação entre os candidatos, que fazem perguntas entre si, se defrontando em relação a propostas e com um maior grau de enfrentamento. Há regras como tempo de resposta e direito de réplica e tréplica. Já na sabatina, semelhante a uma entrevista e geralmente feita individualmente, cada candidato responde a perguntas feitas por mais de um jornalista ou especialista.

No Brasil, o primeiro debate televisionado entre presidenciáveis aconteceu em 1989, transmitido pelo grupo Bandeirantes. O encontro reuniu nove candidatos à Presidência, como Paulo Maluf, Leonel Brizola, Ronaldo Caiado, Mário Covas, Ulysses Guimarães e Lula, e foi mediado por Marília Gabriela. O episódio foi marcado por discussões acaloradas e a mediadora precisou intervir.

Em 2022, um debate entre candidatos ao governo de São Paulo, na TV Cultura, foi marcado por um comportamento agressivo, mas desta vez nos bastidores. Reagindo a provocações do então deputado estadual Douglas Garcia contra a jornalista Vera Magalhães, Leão Serva, diretor de jornalismo da emissora, arremessou o celular do parlamentar ao chão.

No mesmo ano, no debate entre presidenciáveis organizado pela Band, TV Cultura, Folha de S.Paulo e UOL, mais uma confusão nos bastidores. O ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e o deputado federal André Janones (Avante-MG) precisaram ser contidos por assessores e seguranças durante uma briga.

O que muda no cenário atual é a potencialização concedida pela internet. “Os candidatos entendem que, quanto mais estridente, provocador e violento, quanto mais fora da caixinha for a discussão na rede, mais vai engajar”, avalia o cientista político. Outro fator é o aparecimento dos chamados ‘outsiders’ da política, como Jair Bolsonaro, Nikolas Ferreira, Artur do Val (que ficou conhecido como Mamãe Falei) e Pablo Marçal, que ganham visibilidade pelo discurso digital anti-sistema e radicalizado.

Debate no SBT, entre presidenciáveis, em 1989. Crédito: SBT/Reprodução

Mudanças

Apesar do episódio de troca de agressões verbais e físicas entre Datena e Pablo Marçal, o fim dos debates ou ao menos uma mudança radical de formato não estão próximos. A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) defende o encontro entre candidatos.

“Apesar de não ser obrigatório, historicamente o debate sempre demonstrou ser um formato de programa jornalístico importante para o processo eleitoral, pois possibilita que os candidatos apresentem suas propostas e projetos ao eleitor, permitindo, ainda, o confronto direto de ideias. O debate representa, em outras palavras, o próprio exercício da liberdade de imprensa e do direito à informação”, respondeu a instituição, em nota.

Ricardo Ishmael reforça a opinião: “Os debates foram e continuam sendo a grande vitrine para a divulgação de propostas, para o aprofundamento de programas de governo. Isso, por si só, já é muito importante”. Cláudio André de Souza, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e pesquisador da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), também defende: 

"O que se espera dos debates é que haja uma perspectiva de travar uma reflexão mais profunda em relação às propostas dos candidatos e as formas como eles pensam em resolver os problemas. Isso cobra um estudo, um preparo e uma capacidade como futuros gestores públicos. [...] Mesmo que a gente tenha uma democracia com uma saturação ou crise do ponto de vista do debate público, não é por que a gente tem problemas que devemos cancelar debates, sabatinas e entrevistas", coloca. 

A Abert também destacou, em nota, que o formato atual já está sendo repensado por jornalistas e emissoras. O debate entre os candidatos à prefeitura de São Paulo da RedeTV!, que aconteceu dois dias depois do debate da TV Cultura, já apresentou mudanças. As cadeiras do cenário, usadas pelos candidatos, foram parafusadas no chão.

Influência

Um elemento que deve chegar ao Brasil em breve foi testado no confronto entre Kamala Harris e Donald Trump, no último dia 11. A emissora ABC News, que promoveu o debate, colocou checagem de fatos ao vivo. Para o cientista político Fábio Vasconcellos, Trump ficou bastante incomodado ao ser desmentido ao vivo.

“Se um candidato fala algo e outro diz que é mentira, o eleitor acredita em quem? Ali, tinha um terceiro ator, que é a imprensa, dizendo que aquilo era mentira. Não era Kamala. Isso criou uma dificuldade para ele e é um terceiro elemento que deve vir para o Brasil. Você cria um constrangimento para os candidatos que mentem constantemente”.

Os debates nos Estados Unidos influenciam os eventos em outros países por terem uma longa tradição na área, tanto em relação ao papel das emissoras, quanto às atitudes dos participantes. Em 2017, a ex-secretária de estado Hillary Clinton, que concorreu contra Trump em 2016, afirmou que ficou desconfortável no segundo debate televisivo daquele ano porque o republicano ficava muito perto dela.

Em 2022, no Brasil, no último debate do segundo turno, Jair Bolsonaro (PL) usou essa mesma estratégia com o então candidato Lula (PT). Bolsonaro chegou a chamar Lula, em uma das vezes em que o petista se afastou. “Fica aqui, rapaz”, disse. “Não quero ficar perto de você”, devolveu Lula, na ocasião.

Esse desconforto acontece quando o adversário entra no espaço íntimo, que é do tamanho da extensão do braço ao redor da pessoa. “O espaço íntimo permite que você sinta o cheiro da pessoa, escute a respiração. Não é o espaço social. Eu recomendo que a pessoa mantenha o espaço social e não permita que entrem no espaço íntimo. Aquilo desconcentra, gera a sensação de que você está sendo invadido”, explica a consultora em comunicação Olga Curado, especialista em preparação de debates.