‘O que falta para uma vítima de bullying é empoderamento e fortalecimento’, diz psicóloga
Relembre casos de bullying que terminaram em tragédia
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Carolina Cerqueira
ana.cerqueira@redebahia.com.br
Caso Columbine, em 1999. Massacre de Realengo, em 2011. Colégio Goyases, em 2017. Esses e tantos outros não foram suficientes para acabar de vez com os casos de bullying. Em 2024, ao menos dois episódios que também terminaram em tragédia já ganharam os noticiários nacionais. No primeiro, em abril, um menino de 13 anos morreu vítima de agressões físicas. No segundo, em agosto, outro de 14 cometeu suicídio.
Essa vítima era um menino negro, bolsista e homossexual, e os ataques cometidos contra ele faziam proveito disso. O caso levantou a pergunta: qual a diferença entre bullying e outros tipos de preconceito?
Como defende a doutora em psicologia Luciene Tognetta, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o bullying pode ser homofóbico, racista e gordofóbico, por exemplo, sendo tipificado como uma forma de preconceito, mas conserva características específicas.
Para ser bullying, precisa ter repetição. “Um dia a pessoa é ameaçada, no outro tiram sarro dela, no outro a retiram de um grupo do WhatsApp, no outro alguém puxa o cabelo dela”, explica a psicóloga, que também é membro da Fundacion America por La Infancia, sediada no Chile. E as ações precisam vir de um mesmo agressor ou grupo de agressores.
O bullying ainda precisa ser um problema entre pares, pessoas que querem fazer parte do mesmo grupo social. “Não existe bullying entre pai e filho, professor e aluno. Assédio moral é outra coisa”, acrescenta Luciene. Apesar disso, o bullying pode acontecer em qualquer fase da vida, a partir dos 18 meses, quando o ser humano começa a descobrir quem é e a se reconhecer como alguém que é visto pelo outro.
“É mais frequente entre os adolescentes porque é na adolescência que acontece uma segunda tomada de identidade, quando a pessoa passa a ter os próprios valores e a querer participar de um grupo social e se identificar com esse grupo social, a partir de uma necessidade de aceitação”, explica Luciene.
Uma terceira característica é que o autor de bullying sabe que fere e tem a intenção de ferir. Uma quarta prevê que o bullying existe em função de um público que o assiste ou fica sabendo sobre ele. “O que mantém a chama acesa é o espectador, é isso que faz com que o autor se torne potente”, coloca a especialista.
Uma testemunha de bullying não vira, automaticamente, agressora. Ela pode ser desengajada moralmente, como os agressores, mas pode ter empatia com a dor do outro em conjunto com o medo de ser a próxima vítima ou mero desconhecimento sobre como agir.
“A partir de uma pesquisa, descobri que os autores de bullying são mais desengajados moralmente. Eles carecem do que a gente chama na psicologia de uma sensibilidade moral, que é ter empatia com a dor do outro, a capacidade de se comover com o que o outro sente. Já as vítimas são engajadas moralmente, mas falta nelas o autocuidado e a autoproteção”, compartilha Luciene.
Alvo frágil
A última característica do bullying é ter um alvo frágil. As vítimas não ocupam essa posição por serem negras, homossexuais, altas demais, baixas demais, magras demais, gordas demais. Isso não basta. É preciso não ser capaz de se defender das ameaças, que são consentidas, mesmo que inconscientemente, segundo a psicóloga.
Aí está o papel dos pais. “É preciso empoderar as crianças porque o que falta para uma vítima de bullying é o empoderamento e o fortalecimento”, diz Luciene. “Quando meu filho diz que está sendo vítima de bullying, eu tenho que dizer ‘o que você poderia ter feito para que isso não tivesse acontecido? O que você vai fazer para que isso não aconteça mais?’”, orienta.
Segundo a pesquisadora e psicóloga, o termo “vítima de bullying” já está sendo evitado e sendo substituído por “alvo de bullying”. “A vítima é a coitadinha que a gente protege e não podemos alimentar essa fragilidade porque isso é o contrário de fortalecê-la”, defende.
Outras medidas
No caso do filho ser o autor do bullying, a orientação de Luciene é a busca pelo estabelecimento de limites. “Eu preciso dizer: ‘isso não se faz! O que você vai fazer para corrigir isso que fez?’. O trabalho pela reparação é fundamental”, coloca.
Como forma de prevenção, é preciso estar atento aos sinais que as crianças e adolescentes apresentam. Os agressores tendem a apresentar comportamentos arrogantes e prepotentes, além de aparecer como lideranças de grupos e ter dificuldade para pedir desculpas pelo que fazem de errado. Já os alvos tendem a ter dificuldade de fazer amigos e querer se isolar frequentemente.
Ainda aos pais cabe a missão de estabelecer um canal de comunicação diária com os filhos sobre o que acontece na escola e em outros ambientes por eles frequentados. Não adianta querer comunicação depois que o bullying já estiver acontecendo.
“Questões de intimidade são de difícil acesso pelos adultos. Os alvos não vão querer expor suas fragilidades e os agressores não vão vitimizar alguém na frente de um adulto”, alerta Luciene. Por isso, o trabalho de prevenção, que também cabe às escolas, é fundamental.
“A escola deve entender que colocar câmeras e mais professores e supervisores só vai ajudar a vigiar e punir os agressores depois que acontece. Mas essa não é a função da escola, a função é formar cidadãos. A escola precisa saber o que é bullying, trazer discussões sobre o tema para o currículo, preparar os alunos para identificar e intervir, criando um sistema de apoio entre os pares”, finaliza Luciene.
Avanços alcançados
A Lei 13.185/2015, sancionada em 2015, classifica o bullying como intimidação sistemática, que pode ser física, verbal, moral, sexual, social, psicológica, material ou virtual. Ela também obrigada escolas e a sociedade como um todo a adotarem medidas de prevenção. Também reconhece o cyberbullying como uma forma de intimidação.
A Lei 14.811, de 2024, sancionada em 2024, criminaliza o bullying e o cyberbullying, prevendo punição para quem: “intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação, ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais”.
A pena é de multa, se a conduta não constituir crime mais grave. Já o cyberbullying é classificado como intimidação sistemática por meio virtual. Se for realizado por meio da internet, rede social, aplicativos, jogos on-line ou transmitida em tempo real, a pena será de reclusão de dois a quatro anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.
Relembre casos famosos de bullying:
Colégio Bandeirantes - Um aluno de 14 anos cometeu suicídio em agosto de 2024. Ele sofria bullying no Colégio Bandeirantes, em São Paulo. O jovem, bolsista de um programa de inclusão, relatou agressões verbais e físicas por ser negro e homossexual.
Praia Grande – Em abril de 2024, um menino de 13 anos estava internado e morreu com três paradas cardiorrespiratórias uma semana depois de sofrer agressões de colegas da Escola Estadual Júlio Pardo Couto, em Praia Grande, no litoral paulista. Os pais afirmaram que o menino já havia relatado ser vítima de bullying e que a escola já havia sido procurada.
Goyases – Em 2017, um menino de 14 anos matou duas pessoas a tiros no Colégio Goyases, em Goiânia. Ele afirmou que sofria bullying de colegas, que planejou o ataque durante dois meses e que havia se inspirado nos ataques de Columbine e de Realengo.
Massacre de Realengo – Em 2011, um ataque à Escola Municipal Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, deixou 12 mortos. O ex-aluno Wellington Menezes de Oliveira foi o autor do crime, que foi seguido de suicídio. Em carta, o criminoso disse ter sido vítima de bullying na escola.
Columbine - Um professor e 12 alunos foram mortos em um ataque a tiros na Columbine High School, nos Estados Unidos, em 1999. Dois estudantes foram os autores dos disparos e cometeram suicídio em seguida. Relatos indicam que os dois eram alunos muito impopulares e alvos de bullying.
Procure ajuda
Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (Centro de Valorização da Vida) e o Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. LINHA NACIONAL DE PREVENÇÃO AO SUICÍDIO - Disque 188 (veja aqui a tabela com orientações)