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Fernanda Santana
Publicado em 28 de julho de 2024 às 11:00
Com quatro anos de graduação, um jovem psicólogo recebeu no consultório um paciente que não esperava — um pedófilo.
“Lidar com isso foi muito difícil”, recorda Danilo Cruz quase duas décadas depois, “e não esqueci, lembro que precisei ser acompanhado em paralelo para lidar”.
Desde então, o psicólogo e professor universitário atendeu uma dezena de pessoas com pedofilia no consultório privado e no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) do bairro de Valéria. Para a Organização Mundial de Saúde, "a pedofilia é um transtorno [pedofílico] em que adultos têm preferência sexual por crianças" e pode ser tratada com o objetivo de combater crimes, embora não haja cura.
“Os estudos sobre o tema ainda são escassos, porque poucos falam sobre isso ou buscam tratamento. A rede de saúde também não fala sobre isso, porque não vê como prioridade. Existe uma ressalva entre os próprios profissionais de saúde. Acho que as pessoas evitam falar sobre isso para que não sejam identificadas como ‘apoiadoras’, quando é o contrário”, avalia ele.
Em Salvador, existem 3 ambulatórios psicológicos gratuitos (endereços abaixo), que funcionam sob demanda espontânea. Não existe, na cidade, um projeto similar ao ambulatório ABCSex, da Faculdade de Medicina do ABC, especializado no tratamento de pedófilos para prevenção de crimes sexuais.
“O tratamento de um pedófilo é sobre modulação de sentimento [...] e também existe prescrição de principalmente três classes de medicamentos por um psiquiatra. É uma oportunidade de evitar casos de abuso sexual", acredita o psicólogo.
Hoje, o crime de pedofilia não existe no Código Penal brasileiro. Mas a violência sexual contra menores de 14 anos e/ou consumo de distribuição de pornografia infantil pode ser enquadrada como estupro, corrupção de menores, exploração sexual, exposição e divulgação de imagem com conteúdo sexual. A pena varia de 8 a 15 anos.
Neste ano, foram mais de 1 mil denúncias de violência sexual contra crianças registradas na Bahia, de acordo com o Disque 100. Uma das vítimas fatais foi a menina Aisha Vitória, de 8 anos, estuprada e morta por um vizinho em Pernambués, na última terça-feira (23).
O criminoso foi preso por homicídio e estupro de vulnerável. Se nem toda pessoa com pedofilia, segundo Cruz, irá cometer o crime, o inverso vale para quem comete a violência sexual contra crianças: nem todos têm o transtorno da pedofilia, explica ele.
“Há também outros mitos, como que um pedófilo seria uma pessoa que sofreu abuso na infância. Hoje, sabemos que não é bem assim”. Leia o relato do psicólogo na íntegra abaixo.
A primeira vez que atendi um pedófilo foi há 18 anos, no consultório. Lidar com isso é muito difícil também para o psicólogo. Lembro que na época precisei ter atendimento psicológico em paralelo para lidar com essa circunstância*.
Geralmente, as pessoas com transtorno de pedofilia buscam ajuda porque possuem outros transtornos, como depressão, ansiedade e bipolaridade, e o assunto surge. Mas, por conta do sintoma do outro transtorno, principalmente no CAPS, tratamos também da pedofilia.
É porque no CAPS, atendemos transtornos severos e persistentes. E, em tese, o transtorno de pedofilia não é enquadrado assim. A pessoa, em teoria, pode ter uma vida minimamente funcional. Nem sempre a pessoa com pedofilia comete o crime. Então, esse pedófilo é diferente do abusador. Vejo aqui no consultório, atendo pessoas assim, que nunca cometeram nenhum tipo de abuso.
As pessoas ainda acreditam no mito de que o pedófilo seria assim por uma situação traumática de abuso vivida na infância, o que não é bem assim. É comum que a pessoa, na verdade, tenha baixa autoestima e habilidades sociais deficitárias.
Então, vamos trabalhar para que essas pessoas achem adultos interessantes também, desenvolvam habilidades sociais. Na situação em que se encontram, eles dizem achar mais fácil manipular uma criança. Um dos pacientes fala abertamente sobre isso.
Já o perfil socioeconômico varia. No CAPS, estão as pessoas em maior vulnerabilidade econômica. No consultório, pessoas de alto estrato social, com profissões renomadas.
Um deles buscou o consultório pela ansiedade que sofria por se relacionar com uma pessoa bem mais jovem que ele, o que não se configurava como pedofilia, porque a pessoa já tinha mais de 20 anos, mas era bem mais jovem que ele. A grande maioria são homens. Mas também existem pedófilas, já atendi uma, e com um perfil parecido ao dos homens.
Alguns deles vão falar explicitamente do desejo, e percebemos o quanto é difícil que eles falem. Ainda mais porque eles sabem que não serão compreendidos, já que se voltam para pessoas sem características sexuais.
Essas pessoas não verbalizam isso de primeira. Só quando se cria uma confiança com o profissional. Existe um receio de abrir esse assunto porque a pessoa sente vergonha. No CAPS, só há uma pessoa que atendo que não se envergonha de falar sobre, ele verbaliza que não escolheu sentir aquilo e diz que acha importante falar, porque desse jeito ele consegue modular os sentimentos dele .
No final, o tratamento de um pedófilo é sobre modular o sentimento. Outra coisa que é importante: a pessoa com tratamento terapêutico pode tomar decisões mais conscientemente. Fazer terapia faz toda diferença, e isso vale independentemente do problema.
E também existem medicamentos, geralmente três classes de medicamentos, que podem ser prescritos por psiquiatras: hormonais para diminuir a libido; antidepressivos; e antidepressivos de modulação de serotonina.
Me lembro do caso de um senhor que tinha isso, e na terapia ele foi convidado a experimentar uma situação diversa, de buscar alguém mais velho que ele. Os estudos sobre o tema ainda são escassos, porque poucos pedófilos falam sobre isso. A rede de saúde também não fala sobre isso, porque não vê como prioridade.
É um assunto sobre o qual eu só consegui verdadeiramente informação procurando. Os textos oficiais da OMS e outras associações de saúde foram a principal base de atuação.
Existe essa ressalva entre os próprios profissionais de saúde. Às vezes, no CAPS, há discussão coletivas de casos, e percebemos que as pessoas até mudam o tom de voz para falar sobre isso. Acho que as pessoas evitam para que não sejam identificadas como apoiadoras, quando é o contrário.
O profissional pode ter esse conflito, mas quando chega uma pessoa com esse perfil, é uma boa oportunidade para auxiliar aqueles que sentem atração por crianças, mas estão empenhados em não concretizar esse desejo, e combater crimes.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) tem um código de ética e o psicólogo deve decidir quais casos referem-se a riscos e crimes.
É preciso tomar cuidado com as confianças irrestritas que as famílias dão a algumas pessoas. Observe o quanto a pessoa quer tocar, quer olhar, quer sentir o cheiro de uma criança. E abordar essa pessoa se for o caso, e, se der, falar com a criança também. Por isso é tão importante, também, a educação sexual.
AMBULATÓRIOS: Rubin de Pinho (R. Augusto Mendonça S/N, Bonfim. Prox. Vila Militar), Oswaldo Camargo (Vasco da Gama, 36 - Rio Vermelho) e Aristides Novis (Rua Almirante Álvares Câmara, s/nº, Engenho Velho de Brotas).
CAPS: Lista de endereços está disponível no site da Secretaria Municipal de Saúde de Salvador.
Como denunciar abuso sexual infantil? Disque 100 e Disque 190. Disponível 24 horas por dia.
*O Código de Ética profissional dos psicólogos trata sobre a quebra de sigilo em caso de crimes cometidos por pacientes nos artigos 9 e 10.