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O mito da responsabilidade social

A dedutibilidade dos impostos para doações sociais ou culturais é outra aberração

  • J
  • Jorge Cajazeira

Publicado em 19 de maio de 2024 às 05:00

Fui, ao começo dos anos dois mil, o presidente da criação da norma ISO 26000 que lançou e difundiu o conceito de Responsabilidade Social internacionalmente. Uma grande honra.

Eu e meu amigo Eduardo São Thiago, ambos em nome da ABNT, lideramos um grupo de 500 expertos de mais de 80 países. A ISO 26000 foi um movimento internacional complexo com enorme repercussão mundial. Estive na ONU, fui recebido pela Rainha da Suécia, saí na capa dos principais jornais do Brasil e só não fui entrevistado pelo Jô Soares porque a área de comunicações da Suzano, na época, achou que não deveria para evitar uma exposição ao risco devido a alguma saia justa que o brilhante apresentador poderia me colocar diante das câmeras.

Quinze anos depois de publicada, faço aqui a minha análise do legado da ISO 26000. Acho, sinceramente, que o conceito de Responsabilidade Social fez água, criou-se um mito de que uma empresa é capaz de fazer ação social, quando para mim isso é um erro.

A norma prescreve que a Responsabilidade Social é a responsabilidade de uma organização pelos impactos de suas decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente por meio de um comportamento ético e transparente.

O problema é que vem ganhando ampla aceitação de que dirigentes empresariais têm uma ‘responsabilidade social’ que vai além de servir aos interesses legítimos dos seus acionistas. Ou seja, desvirtua-se a ideia simples e eficiente de uma economia livre onde as empresas têm apenas uma responsabilidade social: a de gerar riquezas para seus acionistas desde que joguem dentro das regras da livre concorrência, do respeito à ética, à transparência e ao meio ambiente, como preconiza a nossa ISO 26000.

O conceito de investimento social privado é, copiando as palavras do economista Milton Friedman, Nobel de Ciência Econômicas de 1976, uma doutrina fundamentalmente subversiva.

Investimento social privado é a alocação voluntária de recursos das empresas para o benefício público. Poucas coisas poderiam ser tão danosas para os alicerces de uma sociedade realmente sadia quanto aceitar que executivos empreguem recursos dos acionistas como forma de pagar algum jabá para fomentar projetos de ONGs e assim acalmar os ataques aos seus empreendimentos.

Aqui se pergunte: pode um cidadão do povo, sem concurso público, sem uma doutrina que o ampare, decidir o que é interesse popular?

O primeiro caso escabroso de projetos sociais esfarrapados tomou grande repercussão com o caso da supercelebridade e apresentadora de TV americana Kate Gifford.

Em 1996, Gifford ganhava 9 milhões de dólares anuais licenciando seu nome para uma marca de roupas vendidas na Walmart. Parte da renda era destinada à caridade. O grupo de direitos humanos liderados por Charles Kernaghan, demonstrou que as roupas ‘socialmente juntas’ eram, na verdade, feitas com trabalho oriundo da exploração infantil semiescravo e depois etiquetados com a marca Kathie Lee Gifford.

Gifford chamou o relatório de Kernaghan de ‘um ataque cruel’ em um episódio do seu programa Live with Regis and Kathie Lee. Durante a transmissão, Gifford chorou e explicou que ela não era responsável pelos fabricantes contratados que produziam seus produtos. Olhem só o argumento!

Na verdade, para fazer as roupas de Gifford, meninas de apenas 13 anos trabalhavam por 31 centavos de dólar por hora, 75 horas por semana. Cada peça de coleção da Kathie era vendida por cerca de 50 dólares.

Na pequena comunidade de Oliveira Costa, extremo sul da Bahia, havia um projeto de piscicultura sustentável, também um investimento social privado, que beneficiava 70 famílias. O projeto se apresentava como uma alternativa de geração de renda para dezenas de famílias das comunidades do Picadão da Bahia e de Córrego do Macuco (distrito de Conceição da Barra/ES), que dedicam três dias mensais ao projeto e recebiam, em média, cerca de R$ 620,00 (podendo variar de acordo com o valor de venda do peixe). Ocorre que os gastos com o projeto, com o engenheiro de pesca, e todo o artefato para criação dos peixes custava mais de R$ 1.000,00 por família. Isso lá é investimento sustentável? Não seria melhor investir na qualidade da água do efluente e assim melhorar a situação da pesca no rio como um todo?

Uma empresa é um instrumento dos acionistas que a possuem. Em última instância os acionistas ‘emprestam’ o dinheiro para que os executivos e gerentes o usem de maneira inteligente para que recebam lucros e dividendos. As empresas pagam seus impostos e esses impostos deveriam ser convertidos e geridos para o bem da sociedade por quem de direito, eleito soberanamente, no caso das democracias.

A dedutibilidade dos impostos para doações sociais ou culturais é outra aberração. Isso impede que a destinação dos impostos seja arbitrada pela escolha da população. Acho que ninguém votou no Presidente da Petrobras para que ele tenha autorização pública para investir 1 bilhão de reais em investimentos sociais, sendo uma grande parte com a benção das isenções fiscais.

Investimentos sociais privados, em geral, são excessivamente genéricos, reativos e fragmentados, produto de ações dissociadas da estratégia da empresa e por essa razão não produz impacto social importante, muito menos reforça a competitividade da corporação no longo prazo. Funcionam mais como um cala-boca para ONGs pelegas à caça de capilés e são quase um insulto à sociedade.

O Instituto Goethe, por exemplo, incentiva a formação de artistas e projetos culturais em diversas áreas. Recentemente, apoiou um espetáculo com verbas públicas cujo tema principal foi apresentado como uma forma de discutir preconceito, gênero e sexualidade. ‘Ecoando vozes silenciadas e exibindo corpos invisíveis, a mostra se fundamenta, essencialmente, em transgredir, transmutar e subverter qualquer ação que aprisione identidades e personalidades’, cita texto de divulgação da mostra que consistia em uma série de fotografias de ânus adornados com flores e pérolas.

Algumas exceções podem ser vistas nos prêmios que a Fieb e a sua zelosa gerente ambiental Arlinda Negreiros, minha querida amiga, promovem a cada biênio. Nela, de maneira simples, podemos aprender que dependendo de a empresa controlar o lançamento de resíduos sólidos pode ser genérico, por exemplo, para um banco e especificamente impactante para a cadeia produtiva de uma companhia petroquímica.

No fundo, a verdadeira Responsabilidade Social está na definição da nossa ISO 26000. Manter-se ético com seus públicos de interesse e transparente com a sociedade.

Não adianta distribuir casca de sururu como moeda social, não adianta vender tilápia na feira de Mucuri. Fotos de bundas coloridas não tornam o mundo mais justo. Isso não reduz o risco socioambiental da empresa. O risco socioambiental que causou Brumadinho. O risco socioambiental que causou Mariana. O risco socioambiental que causou ‘a maior tragédia urbana do mundo’, nas palavras de João Henrique Caldas, prefeito de Maceió. Na redução do risco socioambiental reside a verdadeira Responsabilidade Social.

Jorge Cajazeira é Ph.D. em Administração pela FGV/EAESP e professor da UEFS.