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O apagão e o renascimento de Kamala: como a candidata democrata saiu da baixa para virar pop


 

Atual vice-presidente dos Estados Unidos enfrentava baixa popularidade antes de assumir a chapa

  • Thais Borges

Publicado em 04/08/2024 às 05:00:40
Kamala Harris. Crédito: Shutterstock

O dia 21 de julho pode ser apontado como o dia da virada de chave para a vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris. Até aquele dia - especificamente o momento em que o presidente Joe Biden anunciou que não tentaria reeleição e lançou o nome da vice como sua candidata no Partido Democrata -, ela amargava baixa popularidade. Dali em diante, tudo mudou.

De repente, após três anos de apagão e críticas à sua atuação, Kamala ressurgiu. Em apenas 24 horas, sua campanha arrecadou US$81 milhões em doações. O valor foi maior do que o do próprio Biden (US$72 milhões em um trimestre) e de seu rival do Partido Republicano, Donald Trump (US$53 milhões), até aquele momento. Além disso, Kamala virou pop: com memes e trends, ganhou a atenção dos cobiçados eleitores da geração Z, que têm até 27 anos.

Para a professora Cristina Pacheco, da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Kamala ainda pode crescer. "Com Trump definido, os republicanos não podem mudar mais. Eles não têm mais as primárias para ver qual é o melhor candidato para enfrentar Kamala, enquanto ela tem mil possibilidades de moldar mais, pautar mais, se estabelecer. Ela não é uma pessoa que usava o TikTok, por exemplo, mas instrumentalizou agora para falar com os mais novos", diz ela, que é pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).

Kamala entrou no TikTok no dia 25 de julho e já tem vídeos ao lado de artistas pop como a rapper Megan Thee Stallion e o cantor Lance Bass, do ‘N Sync. Enquanto isso, a candidatura de Kamala deve ser confirmada até segunda-feira (5), quando será finalizada a votação virtual entre os delegados do partido.

Ela é candidata única depois que seus principais concorrentes, outros pré-candidatos democratas como o governador da Pensilvânia, Josh Shapiro, e a governadora de Michigan, Gretchen Whitmer, se retiraram da disputa e anunciaram seu apoio à atual vice. A convenção do partido, que deve oficializar tudo, vai acontecer entre os dias 19 e 22.

Nos Estados Unidos, o voto não é obrigatório. Por isso, tal qual em outras democracias de massa, muitas pessoas não se sentem motivadas a votar, como destaca o professor Henrique Oliveira, do programa de pós-graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano da Unifacs e do mestrado em Administração da Unifacs.

Assim, para ele, Kamala oxigena a campanha. "Em termo simbólicos e no inconsciente coletivo, qual a mulher negra não se projeta nela a possibilidade de enfrentar e vencer um bilionário branco com acusações de assédio sexual, racismo e contravenção fiscal? Harris traz consigo fatores importantes para a mobilização da base democrata".

Imigração

Aos 59 anos, Kamala é filha de uma imigrante indiana e de um imigrante jamaicano. Os pais tinham ligações fortes com a academia: enquanto a mãe, Shyamala Gopalan, foi uma importante pesquisadora de câncer de mama, o pai, o economista Donald Harris, é professor emérito da Universidade de Stanford.

Durante seus anos como procuradora-geral na Califórnia, antes de ser senadora, Kamala já tratava do tema da imigração. Ainda assim, quando ela foi incumbida de cuidar da questão migratória durante o governo Biden, começou ali a derrocada de sua avaliação popular.

Isso porque, como explica a professora Cristina Pacheco, é muito comum que o vice-presidente americano da vez seja treinado para ser o próximo candidato. Mas o tema, em si, gerou uma incógnita. "A gente fica: por que essa pauta? A pauta migratória nos Estados Unidos é muito espinhosa, muito complexa e fruto de conflito. É a pauta principal de Trump e é uma pauta complicada para colocar um vice", analisa.

Além disso, mesmo que seja filha de imigrantes, era como se Kamala viesse de uma realidade não tão próxima. Para os críticos da política migratória, há diferenças entre os imigrantes com qualificação e o imigrante que atravessa uma fronteira para tentar uma vida melhor. Ao mesmo tempo, era esperado que ela tivesse uma postura combativa com a imigração, tal qual fazia quando era procuradora.

"Mas ela não fez isso. Ela ficou em silêncio por uns dois anos e meio, então a crítica é muito nesse sentido", diz Cristina. É uma postura diferente, por exemplo, de quando ela foi à Flórida no ano passado para enfrentar a reforma do currículo escolar, que defendia que pessoas escravizadas tinham conseguido algum benefício da escravidão.

"É quando ela resolve acordar para agir, porque queria ser presidenciável. Então, realmente, em 2021 e 2022, ela ficou mais em silêncio. Isso reflete no exterior: a gente não a viu, não ouviu falar sobre ela. Kamala não visitou países", acrescenta. Em termos de comparação, Hillary Clinton, secretária de estado de Barack Obama e candidata democrata em 2016, fez diversas viagens internacionais, inclusive ao Brasil.

Representatividade

Ao mesmo tempo que uns esperavam a postura combativa, havia uma expectativa de que Kamala poderia representar uma mudança nas estruturas tradicionais de poder. Mulheres de minorias étnicas costumam vir de comunidades marginalizadas, como lembra a pesquisadora Chelsea Guevara, da Universidade do Arizona.

"Existe uma frustração porque se espera que esses políticos tenham atitudes que favoreçam o interesse dessas comunidades. Por isso, as pessoas que a apoiam provavelmente esperavam mais. Você vê uma mulher negra e asiática que vai ser vice-presidente. Parecia que as coisas seriam diferentes e elas continuaram praticamente iguais".

O Arizona é justamente um dos ‘swing states’ - os estados ‘pêndulo’, que são os que costumam mudar os votos entre os partidos, de uma eleição para a outra. Apesar de ter sido republicano por muito tempo, em 2020, oscilou para o então candidato democrata, Joe Biden. Pela proximidade com a fronteira do México, tem sido considerado um dos pontos de atenção no pleito deste ano. Outros exemplos são a Pensilvânia e Michigan.

Ainda assim, a mudança de Biden para Kamala trouxe um novo frescor diretamente ligado à idade da candidata. Biden, do alto de seus 81 anos, enfrentava críticas de que estaria senil. Agora, a ideia de que o candidato pode estar velho demais para ocupar a Casa Branca tem sido disseminada pela campanha de Kamala contra Trump, que tem 78 anos.

Para Chelsea, muito do debate na política americana tem se reduzido ao ‘menor dos males’. "Aqueles que não apoiam Trump estavam preocupados com quem seria o candidato, se seria alguém capaz de vencê-lo. Por isso, ela tem ficado mais popular. Além disso, não é porque ela e outros políticos apoiam comunidades marginalizadas que eles são parte delas. Ainda assim, seria um progresso ter uma mulher não-branca na presidência".

Alguns estadunidenses falam até em mais animação na disputa, como pontua a mestranda Kristine Denise, que estuda América Latina, ela trouxe mais animação à disputa. "Mais e mais pessoas estão perguntando ao Google como se registrar para votar. Muitas pessoas estão curiosas, querem participar e querem se envolver. Antes, com Biden e Trump, talvez muitos estivessem se sentindo apáticos por achar que nenhum dos dois era uma boa opção", pondera.

A situação na fronteira é uma dos pontos fracos, principalmente os eleitores latinos - que representam cerca de 20% da população do país. Para o estudante americano Fernando Valdes, que vive em Tucson, cidade a pouco mais de 100 quilômetros do México, Kamala perdeu uma oportunidade de trazer uma política imigratória diferente de Trump e Biden.

"Latinos e pessoas jovens se sentiram traídos pela rendição dos democratas à narrativa republicana. Qualquer eleitor cuja maior preocupação seja a fronteira vai inevitavelmente votar em Trump, então não é possível ganhar esses votos com uma política imigratória nativista branca". Além disso, ele acredita que o apoio de Biden a Israel na guerra em Gaza também desestimulava eleitores mais jovens. "Todos que já votariam em Biden vão votar em Kamala, mas, agora, eleitores jovens e não-brancos estão sendo energizados pela campanha dela".

O professor Henrique Oliveira, da Unifacs, também acredita que as pautas de gênero e raça podem ajudar mais do que atrapalhar o desempenho dela. "Cabe destacar o timing da desistência de Biden e a entrada da campanha de Harris. Foram semanas depois do tiro na orelha de Trump. Isso tomou a pauta da mídia e Trump, mesmo com o tiro, já apresenta um eleitorado saturado. Mesmo com a comoção que o atentado gerou, não tinha muita margem para crescer. Bem diferente de Kamala Harris", completa.