Entenda por que ter o hábito de leitura pode ser crucial para o desenvolvimento das crianças
Segmento infantojuvenil é um dos mais importantes do mercado literário brasileiro
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Thais Borges
thais.borges@redebahia.com.br
Na família, a menina Manuella Telles, 9 anos, é cheia de referências de leitura. A avó, Lígia Telles, professora aposentada do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (Ufba), talvez seja uma das mais relevantes, mas está longe de ser a única. Em casa, entre as amigas, na escola - ter o exemplo da leitura pode ser essencial para o desenvolvimento de uma criança.
Quem defende isso é a médica pediatra Amanda Carvalho, especialista em desenvolvimento infantil pela Universidade de São Paulo (USP). "A criança que lê tem uma imaginação muito mais desenvolvida. Ela tem um poder de compreensão do universo muito maior do que a criança que não lê. E estou falando de leitura recreacional", enfatiza.
Esse tipo de leitura, que vai além dos livros indicados na escola e foca na leitura por lazer, pode ser uma das bases do desenvolvimento da imaginação e na generalização do comportamento - ou seja, para que a criança compreenda, de forma adequada, quais são os ambientes em que vai se inserir.
Dificilmente, porém, uma criança desenvolve o hábito de ler sozinha. Nas idades mais jovens, de acordo com a pediatra, a maioria das atitudes uma criança vai se dar por meio de uma reconstituição do hábito familiar. "Não adianta ensinar que tem que comer fruta e verdura se eu como McDonald’s todo dia. A mesma coisa acontece com a leitura. Tudo, na infância, vai ser por meio de espelhamento. Acaba sendo difícil trabalhar isso, porque, na verdade, muitas vezes estamos falando em mexer nos hábitos da família", explica Amanda.
O Brasil perdeu sete milhões de leitores de 2019 para 2024, atingindo, pela primeira vez desde 2007, um número de não-leitores maior do que o de leitores. Esse foi um dos dados revelados pela pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada na última terça-feira (19) pelo Instituto Pró-Livro. As únicas faixas em que não houve redução foram a de pessoas com 11 e 13 anos e a de pessoas com mais de 70 anos. A primeira, dos 11 aos 13, é justamente uma das que se encaixa no ‘infantojuvenil’.
"A leitura para crianças, especialmente no suporte de um livro ilustrado, é a melhor forma de estimular o desenvolvimento cognitivo. Isso se deve ao fato de o livro ilustrado ser potente o suficiente para engajar a criança, mas deixar espaço para o desenvolvimento da criatividade", explica o psicólogo Alessandro Marimpietri, doutor em Ciências da Educação.
Áreas
Instituir o hábito da leitura até a primeira infância - que vai até os cinco anos - deve ser um dos objetivos das famílias, na avaliação da pediatra Amanda Carvalho. De acordo com ela, a leitura impacta, de forma positiva, as quatro áreas do desenvolvimento: linguagem, motora, cognição e socioemocional.
Os benefícios abarcam até a melhora do sono. Se a criança lê com a família antes de dormir, está também criando um vínculo com o restante da família. Isso pode ser estimulado antes mesmo do nascimento, quando a mãe lê para o bebê ainda na barriga. "A gente sabe que o bebê escuta. Depois, é preciso manter esse hábito dentro da rotina. O mais importante vai ser o que essa rotina vai trazer para a criança em termos de organização, segurança e previsibilidade. Além de amor, a criança precisa de todas essas três coisas. Isso está associado a um melhor desempenho em todas as áreas cerebrais: aprendizado, memória, cognição e adaptabilidade".
A professora aposentada da Ufba Lígia Telles, avó de Manuella, viu isso na prática ao longo dos anos como docente. Uma das queixas mais comuns era de pessoas que falavam sobre a dificuldade de escrever qualquer tipo de texto. "O melhor lugar para se aprender a escrever é lendo, porque você adquire vocabulário. Você passa a conhecer as estruturas da língua".
Telas
Em um contexto em que o uso das plataformas digitais é tão presente, a exposição de crianças a telas desde cedo é um tema apontado por especialistas como uma das razões para a dificuldade para o pleno desenvolvimento infantil.
Segundo o psicólogo Alessandro Marimpietri, o uso excessivo de telas promove um estímulo excessivo em dimensões que não deveriam ser estimuladas, a mesmo tempo em que deixa de promover esses estímulos em outras áreas consideradas cruciais. "Além disso, elas modificam a relação com o sistema de gratificação, podem prejudicar a atenção, aumentar a desregulação das emoções, além de prejuízos sociais importantes".
Uma das formas de fazer com que livros sejam mais interessantes para crianças do que telas, na avaliação dele, é tanto limitar e mediar esse uso quanto criar programas de incentivo à leitura e de fomento à produção literária. "A tecnologia digital veio para ficar e não queremos que as crianças não tenham acesso. Ocorre que ele precisa ser cuidado: limitado no tempo, mediado por adultos, filtrados conteúdos adequados e, sob nenhuma hipótese, o uso deve roubar experiências não digitais".
Fundador e sócio da Mojubá Editora (especializada em publicar livros inclusivos e antirracistas), o escritor e jornalista Ricardo Ishmael acredita que os números de queda no hábito de leitura estão mais ligados a uma incapacidade em estimular que os jovens leiam do que pelo desinteresse do público infantojuvenil. "Se os nossos meninos e meninas estão lendo menos, isso se deve, fundamentalmente, à ausência de estratégias que capturem o seu interesse", analisa ele, que é autor de títulos como ‘O Menino de Asas Invisíveis’ e ‘Deu a louca na bicharada!’.
Ishmael aponta que existe uma tendência a atribuir a culpa pela queda na leitura ao celular, jogos e tecnologias, mas defende que esses equipamentos são plataformas que podem ser aliadas no processo de multiletramento - podendo, inclusive, serem usados na formação de leitores. "Vivemos um tempo histórico profundamente atravessado pelas tecnologias e esse é um cenário inescapável", diz o escritor e jornalista, que reforça que suportes físicos e digitais devem ser entendidos como plataformas complementares. "Precisamos refletir, inclusive, sobre o papel das instituições de base (família e escola nesse processo), a questão da mediação da leitura, fomento à produção literária das pequenas e médias editoras, os preços dos livros, etc".
Para o escritor baiano Breno Fernandes, autor de livros infantojuvenis, as obras vão ter que se adaptar às telas - como já acontece, de certa forma, com os ebooks. "Os leitores como o Kindle - que não é bem o celular, porque não fica ali pipocando de notificação, mas tampouco é o livro - são interessantes. São saídas diplomáticas. Acho que, no final das contas, quaisquer que sejam os estímulos à leitura, eles não vão vir de confrontar tela, mas de encontrar uma espécie de síntese dialética entre livro e tela", pondera.
Mercado literário sofreu mudanças e está em expansão
O cenário literário brasileiro, hoje, é sensivelmente mais diverso do que era no começo do século - e a literatura infantil não tem fugido isso. Essa é a avaliação do escritor baiano Breno Fernandes, autor de livros infantis como Mil — A primeira missão, desde 2002. "Você tem um número maior de autores publicando. Autores que são mais diversos em termos geográficos, de gênero, em termos técnicos, religiosos... Todo tipo de variável".
Já o mercado desenvolveu novos aspectos positivos e negativos. Entre as boas adições, ele destaca que, além da chegada de mais editoras, há novas formas de vender, como os canais online. No entanto, faltou responder à expectativa de uma consolidação, com o espaço para o chamado ‘escritor padrão’ ou ‘escritor operário’.
"O escritor operário é aquele que não é uma bestseller, mas que não é amador, então ele é um escritor que está ali, não vendendo números estratosféricos, mas vendendo um número razoável de obras. Portanto, ele ganha uma quantidade razoável de direitos autorais e, com isso, ele pode ter um tipo de vida razoável".
Na Bahia, um dos maiores representantes do segmento literário infantojuvenil é a Mojubá Editora, fundada pelo escritor e jornalista Ricardo Ishmael em 2020. Desde 2017, apenas os seis títulos publicados por ele já venderam 100 mil exemplares, além dos que foram adotados por escolas particulares e públicas. "A resposta que alcançamos, seja por parte das escolas e livrarias, seja por parte - e sobretudo - das crianças, mostra que há um vasto campo ainda a ser explorado. Percebo desde a nossa primeira publicação, ‘A Princesa do Olhinho Preguiçoso’, que existe grande interesse pela literatura infantojuvenil produzida por editoras e autores baianos".
Para ele, o mercado editorial brasileiro ainda sofre de inconstâncias, a exemplo do preço da matéria-prima. "Nessa esteira, é possível afirmar que o mercado da literatura infantojuvenil em nosso país está em expansão, ainda que existam gargalos e diferenças regionais marcantes. O eixo Sul-Sudeste, por óbvio, ainda detém o monopólio deste setor, mas há experiências em diversas partes do país que apontam numa maior divisão do bolo", afirma Ishmael, citando novos selos editoriais, considerados mais acessíveis a novos escritores e aos independentes.
Eventos como a Bienal do Livro da Bahia têm representado o engajamento do deste público. Responsável pelo evento, a diretora da GL Events Exhibitions, Tatiana Zaccaro, conta que o cenário que encontraram aqui nas duas edições realizadas foi de um ambiente "fértil e propício".
"A leitura carrega, em sua essência, um papel transformador, com impacto na educação, na criatividade, no pensamento crítico, na imaginação, no desenvolvimento da sociedade como um todo. E é na Bienal que muitas crianças têm seu primeiro contato com os livros", diz ela, que cita os passeios escolares.
A programação para os pequenos tem uma curadoria cuidadosa, pensada para juntar diversão e aprendizado, segundo Tatiana. Na última, um dos ambientes foi batizado de ‘Janelas Encantadas’ e contou com cenografia interativa e momentos para ler e desenhar. "A literatura infantojuvenil é um dos segmentos mais dinâmicos do mercado literário brasileiro, em que acompanhamos uma crescente produção de títulos, descoberta de novos autores e editoras especializadas, o que amplia o encantamento de um festival como a Bienal, onde crianças e jovens podem ouvir contação de histórias, descobrir a beleza delas com muita ludicidade e se sentir personagem de um livro".