Como o fenômeno Café com Deus Pai furou a bolha religiosa e se tornou 'megaseller'
Livro mais vendido do Brasil em 2024, título é sucesso em redes sociais
-
Thais Borges
thais.borges@redebahia.com.br
Abra os olhos da fé, diz o título do capítulo. Depois, vem um trecho do segundo livro de Timóteo, na Bíblia: Deus não nos deu espírito de covardia, mas de poder, de amor e de equilíbrio. A sequência é de seis parágrafos sobre como enfrentar o medo, além de outra indicação de leitura bíblica - dessa vez, no livro de Atos, capítulo 12. Por fim, a palavra-chave: vença, com hashtag e tudo.
Para milhares de pessoas, essa será a leitura deste sábado (27). Ou melhor: o devocional do dia. Esse é um resumo do texto reservado pelo livro Café com Deus Pai: Porções Diárias de Paz para o dia 27 de julho - e que é seguido à risca por seus leitores. Com 166 mil exemplares comercializados apenas este ano, o título assinado pelo pastor Junior Rostirola e publicado pela editora Vélos é o livro mais vendido de 2024, em uma liderança disparada, de acordo com a plataforma Bookinfo.
O segundo lugar, o autoajuda O Poder da Autorresponsabilidade, tem pouco mais de 31 cópias vendidas, seguido pelo romance É Assim que Acaba, de Colleen Hoover, com 29 mil exemplares, que dominou o ranking por dois anos. "Ele alcançou um patamar que não é nem um bestseller. É um ‘megaseller’, porque é muito além do que se poderia esperar", diz o diretor tesoureiro do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), Renato Fleischner, também gerente de uma editora do segmento religioso - a Mundo Cristão.
Com as pílulas diárias para serem lidas em cada dia do ano, o Café com Deus Pai caiu no gosto de evangélicos, católicos e até de quem não tem uma religião específica. Nas redes sociais, não é incomum ver stories do Instagram mostrando a reflexão do dia. O livro ficou tão pop que foi parar até em reality show: na última temporada do Casamento às Cegas, da Netflix, uma das cenas mostrou o casal Vanessa e Leonardo lendo um devocional juntos.
O diferencial da obra é justamente a abordagem mais contemporânea e pessoal, na avaliação da professora Suelma Xavier, doutora em Ciências da Religião e docente da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). "O livro media a experiência espiritual através de práticas diárias de reflexão e oração, lembrando que o texto e sua interpretação são uma obra aberta de alcance interpretativo individual. Isso o conecta diretamente com a espiritualidade de cada leitor, ao mesmo tempo que reinterpreta uma tradição cristã", pontua.
Aplicação
O Café com Deus Pai faz parte de um subgênero dentro do segmento de livros religiosos, de acordo com Renato Fleischner, do Snel. Trata-se do devocional, um livro que incentiva a pessoa a ler determinado trecho da Bíblia. Essa leitura traz uma aplicação ou reflexão para o cotidiano da pessoa.
"Esse tipo de publicação é muito comum há muitos anos. Tem livros com mais de 60 anos de publicação que estão dentro dessa linha. Várias editoras publicam. O mérito do Café com Deus Pai foi que ele trouxe isso para outro patamar. Os números que ele alcançou são muito fora de qualquer segmento".
Um dos grandes sucessos do subgênero é o Pão Diário, atualmente em seu 27º volume. Além da versão clássica, a marca tem títulos específicos para mulheres, para universitários e até para profissionais de segurança pública. No entanto, ainda que seja tradicional, nada se compara ao alcance que o Café com Deus Pai atingiu.
Explicar o fenômeno não é algo fácil, segundo o representante do Snel. Um dos pontos que não deve ser desprezado, porém, é o trabalho de divulgação nas redes sociais. Além disso, quem compra diretamente com o autor - ou com a editora Véloz, fundada por ele - pode adquirir produtos relacionados, como caneca e versões ‘teen’ (para adolescentes) e ‘kids’ (para crianças).
"Ele conseguiu aquilo que todo editor busca, que é o buzz, o boca a boca. Na hora que acontece, é imprevisível, mas o produto se torna desejado. O livro sai do nicho religioso e avança para outros tipos de público", comenta. Isso não é algo frequente, mas Fleischner lembra de outros títulos que passaram por movimentos semelhantes. Esse foi o caso do livro As Cinco Linguagens do Amor (de Gary Chapman), que já vendeu dois milhões de exemplares apenas no Brasil e inspirou até postagem da Caixa Econômica Federal no último Dia dos Namorados.
Para a professora Suelma Moraes, da UFPB, a popularidade do livro tem a ver com aspectos como a relevância universal, que atrai leitores de fora do nicho; e a linguagem inclusiva - ou seja, sem ser técnica ou doutrinária. Além disso, testemunhos pessoais ajudam. "(São) Recomendações boca a boca, resenhas positivas e testemunhos de leitores que encontraram valor no livro e com isso impulsionaram sua popularidade. E, claro, tem um bom Marketing de destaque em livrarias, mídias sociais e eventos", acrescenta.
A empreendedora Bella Amarante, 30, faz o Café com Deus Pai desde abril, depois que ganhou o livro de presente do marido. É a primeira vez que ela faz um livro do tipo devocional, depois de ter descoberto nas redes sociais. "O diferencial é de você tomar o café com Deus. É aquele primeiro momento, quando você acorda, e sua obrigação no seu dia é o café da manhã com Deus. Depois, você vai conseguir resolver sua vida já com aquela palavra lançada no seu coração", opina ela, que é evangélica.
Mercado
O autor de Café com Deus Pai, Junior Rostirola, é pastor da Igreja Reviver, em Itajaí (SC). O primeiro livro foi lançado em 2021, com o subtítulo de Porções Diárias de Fé. Em 2022, foi a vez das Porções de Esperança e, no ano seguinte, das Porções de Renovação.
Rostirola já disse que seu intuito foi ir além dos leitores das igrejas evangélicas. "Este livro, em especial, eu vi que precisava entregar na mão do leitor algo que não falasse de religião, que não falasse de placas de igreja, que abrangesse todo o público, entende? Levando mesmo essa pessoa a ter um relacionamento com Deus Pai", contou, em entrevista à editora Vide Verso, em outubro.
Oficialmente, o segmento de livros religiosos representa 16% do mercado editorial brasileiro. A realidade, porém, pode ser muito maior - e por conta de uma particularidade específica do segmento de religião. "Os números que existem sobre livros no mercado são apurados por instituições muito competentes, mas no caso do religioso, na nossa experiência (da Mundo Cristão), apenas 40% das vendas são feitas por pontos de vendas não religiosos", diz, referindo-se às livrarias e sites tradicionais, que são computados.
Livrarias e lojas cristãs, por outro lado, não são contabilizadas por essas estatísticas. "Isso significa que os números que você vê, que são impressionantes, são apenas uma fração da realidade. Esse é um mercado em ascensão e acreditamos que, quando os números deste ano forem apurados, será ainda maior (do que os 16%). Esse setor não tem sofrido tanto quanto outros segmentos de mercado, como os didáticos e as obras gerais", acrescenta.