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Carolina Cerqueira
Publicado em 18 de agosto de 2024 às 05:00
Respire fundo antes de iniciar a leitura. Esta reportagem apresenta conteúdo sensível sobre violência contra mulheres. Enquanto você, leitor, pode fazer a escolha de ter ou não contato com as histórias contadas pelas vítimas, quem trabalha com isso não tem outra opção além de ser forte. Murros, tapas, empurrões, queimaduras e estupros, que deixam marcas ou provocam a morte, fazem parte da rotina de quem faz perícia em ambientes ou corpos que retratam as agressões. >
Esta semana, Fabiola Yañez, ex-mulher do ex-presidente da Argentina Alberto Fernández, de 65 anos, o denunciou por lesões e ameaças, divulgando fotos nas quais aparece com um olho roxo. Também esta semana, a delegada Patrícia Jackes, de Santo Antônio de Jesus, foi encontrada morta, estrangulada com um cinto de segurança, e o principal suspeito é o companheiro, um médico de 26 anos. >
Os dois casos, tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão iguais, lembram a médica legista Alice Sena, de 57 anos, que nenhuma mulher está a salvo. Ela é diretora adjunta do Instituto Médico Legal (IML) e atuou nas perícias de vítimas sobreviventes por quatro anos. Cada relato escutado é mais um alerta. >
“Eu posso dizer que mudou a forma que eu enxergo o mundo e como eu me protejo. Me faz sentir mais vulnerável, me deixa mais alerta e menos permissiva. E para isso não se tornar um medo, uma questão limitante, faço terapia. Todo profissional que lida com isso precisa de acompanhamento psicológico”, diz. >
Como mulher preta, para Alice é difícil não enxergar, nem que seja um pedacinho de si mesma, em cada vítima que atende. “Toda mulher já passou por algum tipo de violência”, é o que se limita a partilhar. >
Mas o mais difícil mesmo é não cair na tentação de julgar. Diante de tantas histórias bárbaras, é desafiador não pensar “Meu Deus! Como ela tolerou isso por tanto tempo?”. A empatia vai sendo trabalhada a cada dia. “A gente tem mania de achar que o mundo é a nossa bolha, mas a realidade fora desse nosso gueto protegido é muito cruel. E a gente precisa sair do nosso gueto para entender o gueto do outro e poder acolhê-lo”, desabafa. >
Dois casos a marcaram de forma mais contundente, destruindo os limites desse gueto e entendendo de vez que, sim, o ser humano é capaz de fazer coisas como essas. Um deles foi enquanto médica legista, quando atendeu uma criança de 4 anos violentada sexualmente pelo próprio pai. As agressões eram conduzidas com associações a brincadeiras e Alice, enquanto mãe, não esquece o momento em que teve que ouvir a criança contar como tudo acontecia. >
O outro caso ela vivenciou enquanto médica que atende em uma unidade de saúde. Recebeu uma mulher de cerca de 70 anos, violentada sexualmente pelo próprio filho, usuário de substâncias psicoativas. >
“Ela chegou dizendo que aquele era o pior dia da vida dela. Enquanto perita, os limites são mais rigorosos, mas quando atendo na unidade de saúde tenho a obrigação de acolher. Como eu ia chegar falando que ela precisava de tal e tal remédio, sendo que o que ela precisava mesmo era um remédio para a alma?”, compartilha. >
Cenários de violência >
Perita criminal há 16 anos, Alessandra Virgínia Pinho, de 48 anos, se vê sempre tentando não ultrapassar os limites profissionais que a perícia de cenários de violência doméstica do Departamento de Polícia Técnica (DPT) exige. O que mais pode fazer pelas vítimas é oferecer a escuta. “Eu tento fazer o mínimo de perguntas possível. Se ela quiser desabafar, eu ouço. E, claro não deixo de orientá-la quanto aos direitos e quais medidas ela pode adotar”, explica. >
Entre as histórias, muitas são de repetição. Alessandra já fez perícia em um mesmo local, com a mesma vítima, mais de uma vez. “Em outros casos, já havia acontecido agressão, mas elas não tinham chamado a polícia porque não identificavam dessa forma. Às vezes, os agressores tinham quebrado coisas dentro de casa, mas não batido nelas”, diz. Uma das vezes, depois de ter a casa completamente destruída, a vítima pediu que não colocassem tornozeleira no companheiro porque tinha medo de que ele pudesse perder o emprego. >
Os cenários encontrados nunca deixam de surpreender. “Até o teto de gesso já vi destruído. Certa vez o agressor, depois da violência, ateou fogo na residência. Quando cheguei para a perícia, encontrei a vítima com os três filhos pequenos, todos desesperados, chorando muito”, lembra. >
Para o perito criminal Leonardo Fernandes, de 47 anos, o que mais dói é encontrar crianças nos cenários da perícia. “A vítima estava com uma criança de uns 9 anos. A criança veio chorando na minha direção, falando ‘tio, não prende meu pai’. Respirei fundo, mas desarmei, as lágrimas vieram nos olhos. Eu disse que ele tinha que ser forte, que a equipe iria cuidar da mãe dele e que não estávamos ali para prender o pai dele”, conta. >
Na maioria dos casos, o agressor destrói eletrodomésticos e as roupas da vítima, seja rasgando ou queimando. As calcinhas e sutiãs e os colchões são o alvo principal, como que para deixar a mensagem de que ‘se não vai estar comigo, não vai estar com mais ninguém’. >
Leonardo já enfrentou diversas vezes a situação de encontrar o agressor no cenário. “Eles gritam que os móveis e eletrodomésticos que destruíram são deles, que eles que compraram, que a gente não deveria estar ali”, lembra. >
Alessandra também já passou por isso. “Chegaríamos para fazer a perícia, mas descobrimos que a vítima estava sendo mantida em cárcere. Ela saiu cheia de hematomas e dei voz de prisão ao agressor. Imobilizado, ele gritava ‘vocês estão fazendo isso comigo porque não sabem quem ela é e o que ela faz, ela é uma p*ta!”, recorda a perita. >
Denúncias de violência podem ser feitas nas unidades da Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher (Deam), em Brotas e Periperi, - em Salvador. Também há atendimento na Casa da Mulher Brasileira, na Av. Tancredo Neves, cujos telefones são (71) 3202-7390/ 7381/7303. O Disque 180 também recebe denúncias anônimas de violência contra mulher. >