Um-Dois, Arte e Matemática*
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Marcio L. F. Nascimento
mlfn@ufba.br
Sussurre matemática ao ouvido de qualquer um e observe sua fisionomia. Em geral há poucos sorrisos, e sempre algo de espanto, tristeza ou mesmo desdém. Mas não é verdade que todo mundo odeie matemática. Um bom exemplo ocorreu há vinte anos.
“Arte & Matemática” corresponde ao título de um programa de tevê brasileiro lançado em 14 de novembro de 2001 pela TV Cultura em acordo com a TV Escola e o Ministério da Educação. Foram 13 episódios de quase 25 minutos cada um em formato digital, sendo esta a primeira experiência da emissora paulista, repetida pela rede de tevês educativas país afora. Inaugurado em horário nobre, competiu com os grandes jornais da TV aberta, atingindo uma espetacular audiência de quase um milhão de espectadores, uma proeza digna de nota não somente pelo tema envolvendo uma insólita mistura como pelo efervescente momento político, social e econômico.
A proposta era de entreter e educar, e não apenas direcionada a um determinado público. Sem dúvida a intenção foi de auxiliar crianças e jovens, mas propondo uma percepção dos temas principais além da técnica e distante dos bancos escolares.
Um grande time, realmente interdisciplinar, envolvendo artistas, roteiristas, comunicadores, músicos, matemáticos, físicos, químicos, engenheiros e historiadores de arte, entre outros, auxiliaram na tarefa de ilustrar os escritos do matemático e comunicador brasileiro Luiz Barco (n. 1939), base de todos os roteiros. Barco foi durante muitos anos, entre 1987 e 2000, colunista da revista Superinteressante, escrevendo mensalmente sobre matemática e educação em sua célebre coluna “Dois Mais Dois”.
Todo aprendizado pode ser visto como um processo artístico. As atividades de artistas e matemáticos tem em comum a repetição, que nada mais é um dos mais antigos procedimentos para se atingir o conhecimento. Um músico aprende as primeiras notas e um pintor domina a escolha de cores assim como um matemático maneja números e formas geométricas.
Assim como os artistas, matemáticos se inspiram a partir de uma miríade de fontes e estímulos. A série “Arte & Matemática” buscou por similaridades entre estas duas atividades humanas. Sua trilha sonora foi elaborada pelo músico e compositor brasileiro Cid Azeredo Campos (n. 1958), e basicamente lembra o processo de contagem: um-dois, um-dois... coincidindo com as narrativas do programa. De fato, a escolha das notas musicais tem um forte apelo matemático. Ao se dividir o valor da frequência de uma nota pela anterior na escala temperada sempre se obtém o mesmo resultado: 1,0594... Tome por exemplo a razão entre as frequências da nota fá (349,23 Hz) e mi (329,63 Hz). O resultado corresponde à raiz duodécima de dois, um número irracional. Este número pode ser obtido numa calculadora extraindo em sequência a raiz quadrada da raiz quadrada da raiz cúbica de 2.
Longe de chata, monótona e desinteressante, a matemática é uma poderosa ferramenta que engloba muitos dos diversos aspectos do universo, inclusive o humano. Muitas obras de arte recebem o epíteto de bela, e isto não é diferente do fazer matemático, que ainda conta com uma força motivadora denominada verdade. O artista plástico brasileiro Wesley Duke Lee (1931 - 2010) definiu no episódio três da série que “a beleza da matemática está na estética do raciocínio.” Bela, genial e verdadeira definição.
Muito discute-se se descobre ou se inventa matemática. Ao ser comparada à arte, é certo que a matemática faz parte da inventividade e engenhosidade humanas. Enquanto linguagem da natureza, não restam dúvidas de que seu bê-á-bá se inicia por um-dois, um- dois... Deste jeito mesmo, em pares, assim como a arte e a matemática.
Marcio Ferreira é professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA
Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores
* Em memória do ator e cantor Edson Cruz (1957 - 2021), mais conhecido como Edson Montenegro, apresentador da série televisiva Arte & Matemática.