Migrar para universos paralelos não salva a Terra da ação humana
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Da Redação
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Fomos bombardeados nos últimos dias pelas repercussões de dois eventos que, aparentemente, não estão relacionados: o início da COP-26, a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021 e o anúncio de que o Facebook mudaria de nome e faria parte de uma nova empresa, META, investindo agora no metaverso.
A COP-26 é um evento mundial reunindo líderes políticos, ativistas, instituições …, com o intuito de buscar acordos mínimos para frear as consequências nefastas do Antropoceno (termo criado pelo químico Paul Crutzen, Prêmio Nobel de 1995, para descrever a nova era geológica do planeta causada pela interferência humana direta). As mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, a extinção de espécies animais, a agressão aos povos da terra, a falta de água e de alimentos já estão acontecendo. É imperativo realizar ações imediatas, como neutralizar as emissões de carbono e reduzir a temperatura do planeta, para garantir a vida das gerações futuras e dos outros animais.
O sociólogo francês Bruno Latour em "Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno” (Boi Tempo, 2020), mostra que essa situação se deve a um movimento de saída da Terra gerado pelo projeto moderno. O planeta é um "recurso natural”, e o objetivo é, como em uma plataforma, saltar para além da natureza. Em um primeiro momento, os recursos pareciam inesgotáveis, mas agora percebemos que nossas ações podem acabar com a vida no planeta. Essa evidência científica, por incrível que pareça, não convence os que continuam em rota de fuga pelo negacionismo climático.
A recente corrida espacial privada de bilionários buscando experiências em volta da Terra, ou em outros planetas, é apenas a constatação da realidade dessa ação, negando a dimensão do “comum”, a possibilidade de uma solução para todos. Recente matéria no El País informa que “cientistas de vários países projetaram uma cidade em Marte para um milhão de pessoas”. Embora possamos ver a beleza das viagens espaciais, trata-se do sintoma do mesmo problema. Só faltaria espaço para 7,79 bilhões de habitantes. Continuamos, assim, decolando ao invés de encarar a materialidade da Terra! A COP-26 é mais uma tentativa de romper com essa migração e forçar uma nova aterragem.
Um mesmo movimento de “escape velocity” acontece com a aposta da plataforma Facebook (rede social mais importante do planeta com quase 3 bilhões de usuários e proprietária do Instagram e do WhatsApp) no metaverso ( “mundo” 3D criados por computadores). Atuais sistemas de realidade virtual, aumentada e games de imersão como Roblox, Minecraft, ou Fortnite oferecem multiversos para usuários já há algum tempo. A promessa é de um “outro universo”, embora a “nuvem” e o “mundo virtual” sejam apenas uma metáfora já que precisam de uso intensivo de energia fóssil (para a conectividade) e de extração de minerais da Terra (para produção de equipamentos).
E lembremos que isso já foi testado e não funcionou: chamava-se “Second Life” ou Google Glass.
Se o metaverso vai dar certo ou não, se tem usos potenciais ou não, esse não é o meu argumento. O que quero destacar é que temos aqui o mesmo princípio que nos trouxe ao Antropoceno: uma fuga da materialidade da Terra (o projeto moderno de conquista da natureza; o foguete que rompe a gravidade; o metaverso digital) nos levando para universos paralelos, e para poucos : os que se salvam da era industrial; os bilionários em seus foguetes; os que podem ter acesso à alta conectividade e equipamentos para navegar ágil e autonomamente pelos metaversos! O Facebook já anunciou lojas fĩsicas para vender óculos de RV!
Estamos perdendo a chance que nos foi dada pela pandemia do novo coronavírus. Ela apontou para a necessidade de pensarmos nas nossas interdependências. A doença em si só virou pandemia pela escalada híbrida e planetária da aventura humana (ver meu livro “A Tecnologia é um Vírus”, Sulina, 2021). Ela nos ensina que só sobreviveremos se abandonarmos essa migração e voltarmos a atenção ao pensamento comum, ligado à materialidade da Terra.
No isolamento vimos como as tecnologias digitais ajudaram (ou fizeram falta) para manter relações interpessoais no trabalho, na educação ou no lazer através de atividades remotas. Houve uma ressignificação dos espaços público e privado, das tensões nos corpos, das formas de contato com os objetos, das maneiras de adoecer e de lidar com os mortos... Infelizmente, ao invés de propor sistemas que nos façam entender a nossa relação com as tecnologias de comunicação em um mundo à beira do colapso climático, o que se propõe é uma nova plataforma de lançamento: a META e seu metaverso.
Migrar para um universo paralelo, abandonar espaços e corpos em um mundo pós-covid interagindo com avatares faz parte, portanto, do mesmo movimento de escape que gerou o Antropoceno. Talvez eu seja pessimista, mas não há saída em metaversos, ou em viagens intergalácticas. No Antropoceno, não há second life. Marte, ou turismo espacial, é para poucos. É preciso enfrentar os enormes desafios econômicos, industriais, energéticos, alimentares... com os pés na terra. Racionalidade e objetividade devem estar vinculadas à materialidade do planeta e a um projeto de uma Terra para todos.
Para nós, no Brasil, os alertas estão aí: na deambulação patética da comitiva presidencial que não foi à COP-26 (revelando pouca importância ao problema) e, siderada e isolada, vagou pela Itália em busca de eventos militares e homenagens particulares; na força da nossa única representante a falar em Glasgow, a indígena Txai Suruí; no triste suicídio do artista, escritor e ativista indígena Jaider Esbell; na destruição diária da Amazônia, na aniquilação da cultura, da educação, da ciência... O delírio é tamanho que o presidente, defensor do negacionismo climático e pandêmico, se auto-condecorou, em 4 de novembro, com uma “Medalha Nacional do Mérito Científico”. Definitivamente estamos em um país fora do mundo e em rota de fuga da Terra, sem direção!
Metaverso, Antropoceno, viagens privadas ao espaço, COP-26 são, portanto, eventos entrelaçados. Por um lado, expõe-se o sintoma e, por outro, tenta-se criar pactos para voltarmos a uma base material e comum. Romper movimentos alucinatórios de migrações delirantes para metaversos, redes de fake news, ou outros planetas é a única possibilidade de sobrevivermos aos perigos do Antropoceno. Como disse Txai Paiter Suruí na abertura da COP-26, “não temos mais tempo”!
*André Lemos é professor titular da FACOM/UFBA