Decifra-me (ou devoro-te) a qualquer hora
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Marcio L. F. Nascimento
mlfn@ufba.br
Reza a lenda que um monstro fantástico alado, metade leão, metade humano, assombrava com enigmas, devorando-os quando não decifrado. Uma das questões era: “que criatura anda pela manhã sobre quatro patas, a tarde sobre duas e a noite sobre três?”
A este monstro que vociferava: decifra-me ou devoro-te, os antigos denominavam esfinge. Uma das mais espetaculares, maior e mais famosa, feita de rocha, situa-se imponente, guardiã das três pirâmides de Gizé, no banco oeste do rio Nilo. O nome provém do grego sphingo, que significa aquele que estrangula com dor, lembrando a ação de leoas após a caça, que costumeiramente estrangulam a presa pela garganta até a morte.
Há dois mil e quinhentos anos o grande dramaturgo e poeta grego Sófocles (c. 497 – c. 405 a.C.) escreveu a extraordinária peça “Édipo Rei” por volta de 427 a.C. Ao chegar à cidade de Tebas, havia uma esfinge na entrada principal a devorar a todos que não decifrassem seus enigmas. Ao responder acertadamente, Édipo salvou a cidade das garras do famigerado monstro que se suicidou saltando de um precipício.
A resposta a este clássico enigma é o ser humano, pois engatinha quando bebê, anda ereto quando adulto, e necessita de um arrimo, como uma bengala, na velhice. Édipo e a esfinge, de Ingres Outra grande invenção da antiguidade é a matemática. Em grego, máthema significa entre outras coisas, decifrador. Um matemático decifra a natureza, descobrindo padrões a partir de invenções como os números e as formas. Uma criança que gosta de animais pode ver e apontar: gato, gato, gato e gato. Ela não está errada em assumir a cada vez que aponta seu dedinho um gato, totalizando quatro animais, elaborando uma correspondência natural. Em casa, e na escola, ela, repetidas vezes, deverá aprender a associar quatro à quantidade de gatos, apreendendo o conceito. Num passo seguinte, irá associar a cada um de seus dedinhos a quantidade correspondente a um gato. Posteriormente, será apresentada ao numeral quatro, representado tanto pelo algarismo 4 quanto pela palavra, iniciando sua alfabetização.
Números são ótimos atalhos ao aprendizado, pois evitam a repetição da sequência de palavras “gato, gato, gato, gato” e representam o conceito mais útil de “quatro”, uma invenção absolutamente incrível da humanidade, perdida entre os infinitos números que surgiram a partir da ideia primordial, esta além da realidade.
A matemática tem o poder de reduzir o universo a poucos símbolos, códigos da natureza. Mas esta abstração não deveria assustar, pois de fato é tão comum e equivalente a outros conceitos que a humanidade criou, como verdade, beleza ou justiça.
Um antigo problema do ensino é auxiliar crianças, jovens, e mesmo velhos, a decodificar a natureza, os mesmos personagens da resposta edipiana. Seja o enigma da esfinge, seja uma conta de matemática, ambas necessitam de um professor, aquele que professa, que tem fé, ou ainda, não tem dúvidas e acredita, e que auxilia a decifrar. Matemática é então invenção e descoberta: inventa conceitos e descobre suas consequências.
A matemática não é uma esfinge a devorar sonhos de quem porventura não saiba naquele momento o significado de certo enigma. Ela consiste num dos mais belos saberes da humanidade. A natureza está aí para ser (re)criada e descoberta em seus códigos e padrões, a qualquer momento e para qualquer um. Não cabe mais nas escolas um ensino baseado no mito da esfinge, e sim na liberdade e na alegria de aprender e decifrar as regras do universo. O enigma da natureza está aberto e acessível para todos. O lema da matemática deveria ser: decifra-me a qualquer hora, pois a resposta sempre é dada por um ser humano, como Édipo sabiamente soube responder.
* Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da Ufba