Carregar pedras, cantar e dançar a seu modo: irmandades negras ontem e hoje
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Da Redação
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Entre as construções seculares de Salvador, destaca-se uma imponente igreja na Ladeira do Pelourinho. A obra iniciada em 1704 foi iniciativa de oficiais da Irmandade do Rosário da Sé que, segundo relato, decidiram “ir às pedreiras a quebrar pedras, carregando-as nos ombros para o sítio onde a fundaram”. Instituída em 1685, é uma das mais antigas irmandades negras do Brasil. Teve diversos títulos. O atual - Venerável Ordem Terceira do Rosário de N. S. às Portas do Carmo (Irmandade dos Homens Pretos) do Pelourinho - incorpora os anteriores.
Embora sua história seja notável, ela não foi a única. Há notícias de irmandades negras em outras partes das Américas e na Europa. Em Salvador, na segunda metade do século XVIII, quase todas as freguesias possuíam irmandades negras. Havia irmandades do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia, Santo Rei Baltazar, Senhor dos Martírios nas freguesias da Vitória, Conceição da Praia, Santo António Além do Carmo, Santana e Itapagipe.
A devoção à N. S. da Boa Morte foi popular em Salvador no século XIX até meados do XX. Há quem afirme que a de Cachoeira foi obra de devotas que migraram da capital para o Recôncavo. Seu estatuto de fundação mais antigo não é conhecido. Ela nasceu como uma irmandade de devoção, organizada e “reinventada” por mulheres ligadas aos candomblés locais. A força dessa fé em Cachoeira é fruto do empenho de gerações de mulheres que mantiveram o culto e a entidade ativa ao longo do século XX, interligando-se com a história de resistência das comunidades de terreiro.
A criação, expansão e sobrevivência das irmandades negras resultaram do trabalho e da organização de pessoas escravizadas, libertas e livres. Mas por que tanto interesse neste tipo de associação? Nos séculos passados, participar de uma irmandade era a garantia de uma morte “decente”, proteção na doença, fome e prisão, convívio com iguais e prestígio social.
Em particular, para os africanos e seus descendentes, elas foram espaços de conforto coletivo em meio aos horrores cotidianos do regime escravista. As possibilidades de autonomia relativa ou não eram várias: escolha da devoção (a Senhora dos pretos ou um santo preto), administração do templo, controle financeiro, organização de festas onde podiam tocar, dançar e cantar “a seu modo”. Nas irmandades, o catolicismo foi relido e vivido à luz de referenciais africanos, da escravidão e do racismo. Na contramão de um sistema de violência, gestaram novas formas de existir!
A irmandade do Rosário dos Pretos do Pelourinho tem mantido vínculos com novas expressões do associativismo negro, como a Sociedade Protetora dos Desvalidos. Muitas irmãs da Boa Morte são ativas em organizações políticas pelos direitos das comunidades de terreiro e da população negra, a exemplo do grupo Mulheres de Axé do Brasil.
*Lucilene Reginaldo é professora do Departamento de História (Unicamp) e integrante da Rede de HistoriadorXs NegrXs
*Mariana Regis é doutoranda em História (UnB) e integrante da Rede de HistoriadorXs NegrXs