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'Arquivo morto': colégio estadual guarda 116 pastas de alunos assassinados em 10 anos


 

Vítimas são jovens entre 14 e 20 anos que residiam no entorno e estudavam no Rubén Dario, na Avenida San Martin

  • Bruno Wendel

Publicado em 10/08/2024 às 05:00:40
Insegurança: 116 estudantes do Colégio Rubén Dario foram mortos pela violência urbana de Salvador . Crédito: Marina Silva/CORREIO

Em uma das salas do Colégio Estadual Rubén Dario, na Avenida San Martin, é mantido mais do que o histórico dos 1.200 alunos que atualmente estudam na unidade escolar. Lá, entre as gavetas estão 116 pastas de estudantes assassinados nos últimos 10 anos. O acervo, conhecido como “arquivo morto”, guarda a vida estudantil de jovens da periferia, com idades entre 14 e 20 anos, vítimas da violência dentro das comunidades que cercam a escola. Eram estudantes populares, mas não criavam problema na aula, porém fora do ambiente escolar, alguns eram temidos e procurados pela polícia. Essa realidade veio à tona em um vídeo institucional, feito por estudantes em 2023, através de um projeto da Secretaria Estadual do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte (Setre).

O vídeo chamado Sonhos Roubados faz parte do projeto Força Jovem, do Programa Juventude Produtiva da Setre, disponível no Youtube (https://youtu.be/DjgvhWw7TW8?si=PE04LJ_H3yfxuLl8). A gravação foi realizada no segundo semestre do ano passado, postada na plataforma de compartilhamento no dia 19 de dezembro e contava pouco mais de 400 visualizações até sexta-feira (9). A produção tem quase 15 minutos e traz o olhar da comunidade do Rubén Dario diante dos conflitos armados em seu entorno.

O colégio, onde estudam jovens do Ensino Fundamental II, etapa da Educação Básica que compreende do 6º ao 9º ano (antigas 5ª a 8ª série), está na Avenida San Martin, uma das mais movimentadas de Salvador. A via corta os bairros de São Caetano, Fazenda Grande, Fazenda Grande do Retiro, Santa Mônica e Curuzu – todos territórios conflagrados, disputados pelas duas maiores organizações criminosas em atuação na Bahia: o Bonde do Maluco (BDM) e o Comando Vermelho (CV).

“É um ato de desespero. Ou seja, de desamparo, de pouco acesso à justiça, para esses jovens que tiveram a vida ceifada e isso é um impacto muito grande para o ambiente escolar. Serve como sinal de alerta, para que casos como estes tenham algum tipo de amparo jurídico na sua resolução”, comenta o sociólogo Daniel Hirata, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF).

O CORREIO sabia da existência do “arquivo morto” há cerca de dois anos. Desde então, a reportagem buscava o acervo. Há dois meses, a reportagem tomou conhecimento do vídeo institucional, através de um dos alunos. O “arquivo morto” é mostrado a partir da participação do então diretor da unidade, o professor Antônio Pimenta, que aparece ao lado de 20 pastas empilhadas. À medida em que mostra parte do acervo, ele lamenta: “muitos vieram aqui na sala conversar, brincar, outros que já tinham um comportamento mais acuado, mas que infelizmente tiveram o mesmo destino: foram mortos. Mortos por um sistema que exclui principalmente a juventude negra da possibilidade de sonhar”, diz o professor na gravação. As 116 pastas estão numa sala do arquivo (geral) da escola, distribuídas em gavetas junto com outros documentos.

De certo, esses dados estão representados nas edições do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que, no último dia 18, mostrou que as vítimas de homicídio doloso (quando há intenção de matar) tinham até 29 anos em 47,4% das Mortes Violentas Intencionais (MVI). O relatório pontuou ainda que pretos e pardos representam 78% de todos os registros de MVI.

“É importante a gente observar que, quando nós pegamos os dados do desempenho escolar e da evasão com estatísticas criminais, nós vamos ter um quadro onde está a maior parte dos homens jovens negros, tanto nas taxas de letalidade no Brasil, quanto também nas taxas de encarceramento. Nós vamos perceber que a saída precoce da escola é um fator de risco para a vida de meninos negros no Brasil: quanto mais tempo a gente consegue manter meninos negros na escola, mais tempo nós vamos conseguir de vida para essas pessoas”, declara o cofundador e coordenador executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, Dudu Ribeiro, integrante da rede de Observatórios de Segurança.

Mortes

Durante o depoimento, o professor cita alguns casos. “Não foi somente ele. Ele e mais dois irmãos. Três de uma mesma família representados numa única pasta”, lamenta Pimenta, enquanto segura um dos documentos. De acordo com alguns alunos ouvidos esta semana pelo CORREIO, o professor faz referência aos gêmeos “Lindo” e Lindão” e um primo deles. Os três moravam na Fazenda Grande do Retiro. Os irmãos, que tinham 17 anos, morreram em 2019. Eles foram encontrados na Rua Fonte do Capim, onde moravam, com vários tiros.

Insegurança: 116 estudantes do Colégio Rubén Dario foram mortos pela violência urbana de Salvador. Crédito: Maria Silva/CORREIO

“Eles chegavam com relógio, dinheiro, mas não trabalhavam. Não eram violentos na escola, mas a comunidade já estava com medo deles. A própria mãe já tinha dito que perdeu o controle deles. [Eles] Não tinham horário para chegar em casa”, conta a fonte. Seis meses depois, o terceiro é executado. “Ele tinha entre 14 e 16 anos. A gente só ficou sabendo quando a mãe veio buscar a documentação dele”, diz a fonte, que em seguida lembrou o episódio que não foi mencionado no vídeo pelo professor. Foi a morte de um rapaz chamado Bruno. Ele tinha 19 anos. “Em 2022, ele postou uma foto num paredão de uma área rival da rua dele e os caras retiraram ele de casa e o mataram na frente da mãe, na Fonte do Capim”, relembra.

No trecho "este foi vitimado por ter imagens no celular que não deveria ter", Pimenta fala de Rafael, um rapaz de 19 anos, segundo a fonte. O rapaz foi assassinado em maio do ano passado no IAPI. “Ele foi entregar uma comida, quando pegaram o celular e viram fotos de uns caras que seriam rivais. Quando ia para escola, não frequentava as aulas. Era um aluno mediano, passava na média (5,0)”, conta. Ainda no vídeo, em um determinado momento, o docente diz “meninas também”, fazendo referência às vítimas mulheres. “Uma adolescente de 14 anos, chamada Cíntia, foi morta atrás da escola porque o namorado dela, um traficante, não aceitava o fim da relação. Isso já tem uns dez anos”, lembra a mãe de um dos estudantes.

O diretor encerra sua fala no vídeo dizendo “este aqui foi o último, que não tem nem um mês, que também foi vitimado", fazendo alusão ao caso de um aluno que morreu em confronto com a polícia na Rua São Cristóvão, no bairro do Curuzu. Mas se a produção fosse feita atualmente, certamente seria relatado o caso do aluno de 14 anos, que também trocou tiros no início do ano letivo deste ano no Largo do Tanque, onde ele morava. “Ele não era problema na aula, mas barbarizava fora. Era do BDM (Bonde do Maluco). No final do ano passado, depois de saber que foi reprovado, ele postou um vídeo nas redes sociais dizendo: ‘Você viu o resultado? Quem disse que bandido estuda?’”, conta a fonte.

Vídeo

O vídeo, produzido pela Setre e exibido em outras secretarias no segundo semestre de 2023, teve o apoio da Secretaria de Educação (SEC), do Centro Juvenil de Ciência e Cultura (CJCC), do Centro de Educação Especial da Bahia (CEEBA), da Associação Baiana Estudantil Secundarista (ABES) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). O objetivo foi coletar depoimentos de professores e estudantes para elaboração de projetos pedagógicos em mais 120 unidades de ensino do estado. Um dos temas foi a violência no ambiente escolar.

“A violência é algo que, infelizmente, está presente em nossa sociedade e na escola, como um braço da sociedade, acaba acontecendo, mas de forma muito pontual, onde a administração da escola sempre tenta controlar, evitar ao máximo para que aconteça algo mais grave”, declara a professora do Rubén Dario, Débora Oliveira, que também participa do vídeo.

Em outro depoimento, a também professora do colégio Gricélia Cardoso opina como esses jovens foram cooptados pelo tráfico de drogas. “O que aconteceu com esses jovens, foi o envolvimento com as drogas, com álcool e a busca de dinheiro para comprar comida, roupa, sapato, para comprar algo para ter. Eles não conseguiram ser. Eles foram em busca de ter e, lamentavelmente, se envolveram com a violência”, diz ela, no vídeo.

A produção traz ainda o relato da estudante Márcia Verônica, de 18 anos. “É ruim saber que uma menina de 14 anos morreu e não pôde dançar a valsa dela. É ruim saber que um jovem de 18 anos não estudou, não cresceu, não fez nada da vida. Como ficam essas famílias? Eu vou criar meu filho, para quando ele chegar aos 17 anos, com o cabelo crespo, a pele negra, tomar um tiro no meio da rua? Eu não quero isso para o meu filho”, declara.

Mães

O CORREIO entrou em contato com parentes de alguns alunos do Rubén Dario que foram assassinados, mas a maioria preferiu não falar sobre o assunto, alegando medo de represália, pois os autores seriam da comunidade e de regiões próximas. Apenas duas mulheres aceitaram falar por telefone. Para garantir a segurança delas, além dos nomes, a reportagem vai preservar outros dados que podem de alguma forma identificá-las, como profissão, nome dos filhos, rua e bairro onde moravam, datas e os locais das mortes.

A primeira é uma mãe que, no dia da entrevista, havia acordado com um vazio no peito. “É uma dor que nunca cura. E isso dói e muito, porque hoje mesmo ... acordei com saudade de meu filho”, diz. Entre lágrimas, ela disse que o rapaz foi morto numa ação policial. “Naquele dia, eu perdi o meu filho, porque ele estava no lugar errado, na hora errada. O sistema não quer saber se é dependente químico, se ele tem mãe, se ele tem pai, se tem um irmão ou uma irmã. O sistema não quer saber se é dependente químico, se ele tem mãe, se ele tem pai, se tem um irmão ou uma irmã. Que trabalho é esse? Tá errado! Coloque a algema, dentro da mala e leve e comunique a família onde está ... O sistema não matou só o meu filho. O sistema me matou sem arma”, declara.

Durante a conversa, ela, mãe solo, disse que fez o que estava a seu alcance para evitar o pior. “Eles levaram um pedaço de uma mãe, que é mãe e pai, que sai para trabalhar, que tem todo o cuidado do mundo com o seu filho, que deu tudo ao seu filho, deu conselho, deu escola particular sem poder, que varou a madrugada cozinhando, e que foi punido porque era .... simplesmente um dependente químico. E quem sou eu para ir de encontro ao sistema, para morrer também?”, emenda.

A segunda é uma mãe também. Ao contrário da anterior, foi sucinta e disse que se apega à fé. “É pedir força para tentar esquecer. Se não for a presença de Deus, a gente desmorona. Estou vivendo pela fé. A gente lembra, mas não vai trazer de volta. É pedir força a Jesus e seguir a vida. É orar para que os outros não sigam o caminho errado também”, diz ela, que tem outros filhos.

Posicionamentos

O Conselho Estadual de Educação da Bahia (CEE-BA) lamentou “profundamente as trágicas mortes dos 116 estudantes do Colégio Estadual Rubén Dario”. “Estamos cientes do impacto devastador que a violência urbana tem sobre nossos jovens e sobre a comunidade escolar como um todo”, diz a nota. O CEE-BA informou que está atento “às questões que afetam diretamente a vida e a segurança dos nossos estudantes e buscamos, por meio de nossas ações de normatização pedagógica, mitigar os impactos da violência no ambiente escolar”. Em uma das ações, o órgão citou a criação do Programa de Atenção à Saúde e Valorização do Professor (PASVAP), “com o objetivo de promover o bem-estar físico e emocional dos educadores, servidores e estudantes”.

A reportagem enviou e-mail na quinta-feira (01), sexta-feira (02), terça-feira (06) e quarta-feira (07) para a Secretaria de Educação do Estado (SEC), a Polícia Militar (PMBA) e a Secretaria de Segurança Pública (SSPBA) . Até o momento, não há resposta.