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Elite até tentou, mas o povo venceu: saiba o que mudou no desfile de 2 de Julho em Salvador


 

Várias medidas foram tomadas para conter a participação popular na festa

  • Maysa Polcri

Publicado em 02/07/2024 às 05:30:00
Antes de ser concentrado no trajeto de hoje, celebração era espalhada pela capital. Crédito: Arquivo CORREIO

Os gritos de “mata-marotos” já ecoavam entre os corredores estreitos do trajeto entre a Lapinha e o Terreiro de Jesus nos primeiros anos de comemoração da Independência do Brasil na Bahia. Chamados de marotos no século XIX, os portugueses eram alvo de protestos dos brasileiros, contrários aos aumentos de preços nos armazéns de Salvador. O 2 de Julho foi, desde o início, oportunidade para o povo baiano dar as caras, em forma de protesto ou de festa. Mas o caráter popular incomodava a elite da época, que fez o que pôde para ordenar o cortejo, que acontece nesta terça-feira (2).

Concentrar os festejos em um único circuito foi uma das tentativas para tirar o clima de carnaval do desfile. Antes, as celebrações eram espalhadas, o que dificultava o controle da população. Há registros de festas na Rua Castro Neves, em Brotas, e na Boca do Rio, como conta o professor de História Murilo Melo.

“O 2 de Julho era comemorado de uma maneira espalhada, diferente de hoje que temos o desfile ‘oficial’. Em 1895, por pressão das elites, o monumento da Praça Campo Grande foi construído para tentar tornar a festa mais cívica, menos espalhafatosa e jocosa”, diz. Até aquele ano, o percurso tinha início na Lapinha - para rememorar a entrada do exército libertador - e terminava no Pelourinho. E o povo aproveitava para varar a noite com as rodas de samba por ali.

Quando o Monumento ao Dois de Julho, encomendado ao artista italiano Carlo Nicoli, foi finalmente inaugurado, em 1895, o trajeto aumentou. O caminho percorrido pelos carros do Caboclo e da Cabocla ficou dois quilômetros mais longo. Para Murilo Melo, as elites tentaram “petrificar o caboclo”. Se ele era venerado em cada esquina ao longo do desfile, agora teria um ponto para reunir a celebração. “Até hoje o desfile vai até lá, mas a maior concentração de pessoas continua sendo na Lapinha até o Pelourinho”, analisa.

Desfile do 2 de Julho de 1996. Crédito: Foto: Claudionor Junior/Arquivo CORREIO

A tradição de repetir o trajeto dos veteranos das batalhas da independência começou em 1824, no ano seguinte à vitória contra os portugueses na Bahia. O desfile foi feito, inicialmente, apenas com a presença da imagem do Caboclo, que apunhala uma serpente com uma lança.

A versão feminina só ganhou seu caramanchão cerca de duas décadas depois. “Diziam que o caboclo tinha um semblante perverso contra os portugueses. A serpente representava Portugal. Daí sugeriram uma figura feminina para balancear”, explica o historiador Murilo Melo. No momento pós-independência, o futuro do país era incerto e a participação do povo na rua causava tensão.

“Todo processo de mudança política cria uma instabilidade. Hoje, nós sabemos o que aconteceu. Mas as pessoas viviam em um campo de incertezas. A ideia de uma rua onde a população predomina, festejando e protestando, causava receio”, afirma Wlamyra Albuquerque, autora do livro Algazarra nas Ruas: Comemorações da Independência na Bahia (1889-1923).

O termo “algazarra”, que dá título à obra, foi encontrado em um documento da polícia sobre o festejo no século XIX. “Eram muitos interesses de classe e raciais divergentes, que tornavam as ruas um espaço latente de conflitos. Era como um barril de pólvora”, completa a historiadora.

Como outras festas populares, o 2 de Julho não se deixou ser domado pelo desejo das elites. Manteve, ao longo de 200 anos, suas diferentes vertentes: da algazarra ao civismo, passando pelo sincretismo religioso e pelos protestos. Esses últimos causavam arrepios de medo aos comerciantes portugueses. Não era incomum que eles fechassem as portas dos armazéns para escapar do vandalismo das ruas, inflado pelas bebidas da festa.

Os encourados de Pedrão no primeiro 2 de Julho coberto pelo Correio, em 1979, que acabava de estrear. Crédito: Carlos Catela /Arquivo Correio

Comemorar a independência, desde o início, oportunizava a realização de protestos - marca dos desfiles até hoje. “Os protestos sempre deram um protagonismo ainda mais forte no caráter popular do 2 de Julho. Ele não nasce apenas para lembrar o contorno do evento cívico, mas como um local de expressão do povo e suas angústias”, ressalta o historiador Rafael Dantas. Quem esteve presente nas batalhas contra os portugueses fazia questão de comparecer ao desfile.

“Quem comemorava era o povo, em suas mais diversas faces e características. O movimento sempre foi uma grande expressão popular, de ex-combatentes, pessoas que vivenciaram o conflito e estiveram inseridas na realidade de Salvador e do Recôncavo”, conta Dantas. O estado logo se atentou ao tamanho da festa e decidiu que não ficaria de fora, dando os contornos institucionais ao evento.

“Os representantes dos poderes públicos e das elites locais perceberam a relevância de se lembrar desse evento. Aí entram as questões inseridas no momento de se entender o 2 de Julho como uma data cívica”, completa o historiador. A grande participação popular também fez brilhar os olhos de políticos e candidatos que aproveitaram o cortejo para demonstrar sua força eleitoral.

“Todos os festejos em que as pessoas têm oportunidade de ver e serem vistas viram políticos. O 2 de Julho começou a ser considerado um termômetro dos políticos baianos a partir do século XX, se eles estavam bem ou não para as eleições”, diz Murilo Melo. Se há um consenso entre os historiadores, é o de que cada edição do festejo representa dado momento vivido pelo povo. Até hoje, a data é reflexo dos anseios de um povo que aspira liberdade, nas suas mais variadas formas.