Conheça Dona Brígida, a cabocla do 2 de Julho que tem nome e até família
Entenda os mistérios sobre a cabocla que desfila todos os anos em Saubara ao lado de suas ‘netas’
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Thais Borges
thais.borges@redebahia.com.br
Em cima de um carro enfeitado com folhas de palmeira e de plantas nativas, penachos, bandeiras e frutas, a Cabocla sai do Bairro da Rocinha. Vai ser assim nesta segunda (1º), como tem sido há tanto tempo que os moradores de Saubara, no Recôncavo, nem sabem dizer quando começou. Nesta terça (2), a Cabocla vai sair de novo - agora, no desfile cívico que celebra a Independência do Brasil na Bahia.
Mas não é qualquer Cabocla. Ao contrário de cidades como Salvador, em que os caboclos não têm identificação específica, em Saubara, a heroína tem família, título honorífico, nome e, talvez, até sobrenome. Há mais de um século, ela é Dona Brígida - ou, simplesmente, a Cabocla Brígida. Entre saubarenses, principalmente mulheres, há uma certeza: todas ali são as ‘netas de Brígida’.
Oficialmente, Brígida nunca existiu. Não há documentos que comprovem que uma mulher de raízes indígenas com esse nome tenha atuado nas batalhas travadas em Saubara. Segundo a secretária de Cultura, Esporte e Lazer do município, Joanita Carvalho, foram “os antigos” que a batizaram com esse nome. Quando aconteceu e por qual razão, por outro lado, são perguntas difíceis de serem respondidas.
“Não é o nome de alguém. Não existiu a pessoa Brígida. A ela, foi dado esse nome, como símbolo da resistência dos nossos antepassados. Ela representa os índios, os negros, os escravos, os pescadores… Todas as pessoas que lutaram em prol da nossa independência. Ela é um marco histórico do nosso município”, explica Joanita, que é quem cuida diretamente do roteiro da Cabocla.
Os marcos temporais são um desafio. Sabe-se que o desfile cívico é centenário, mas não há registros que apontem, com certeza, se começou logo após 2 de julho de 1823 ou se levou mais algumas décadas. É fato que Brígida veio depois, mas o início é igualmente um mistério. O desfile dela é acompanhado pelas Caretas do Mingau, um movimento cultural de mulheres que relembra as antepassadas que, durante a guerra, se vestiam de branco para amedrontar os portugueses enquanto alimentavam seus entes queridos.
Ainda assim, a historiadora Vanessa Orewá, que desenvolveu a pesquisa de mestrado em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) sobre as caretas do mingau, acredita que houve um movimento parecido com o que se deu em Salvador. Cresceu uma consciência coletiva de buscar encontrar uma figura para os heróis baianos e nacionais dessa guerra. “Mas acho muito pouco provável que tenha sido uma pessoa”, acrescenta.
Além de Brígida, são raros os caboclos que recebem nome. A poucas horas de Saubara, tanto no dia 1º quanto no dia 2, a cabocla Dona América desfila pelas ruas de Jaguaripe. O outro exemplo conhecido é o do caboclo Eduardo Tupinambá, de Itaparica. A diferença, contudo, é que Eduardo desfila bem antes: sua festa ocorre no dia 7 de janeiro de cada ano, uma vez que foi no sétimo dia de 1823 que o povo de Itaparica expulsou as tropas portuguesas da ilha.
Persona
A pessoa Brígida pode até não ter existido, mas, no imaginário dos moradores de Saubara, ela é uma das protagonistas da festa. Ela é tão importante que, se o pessoal não gostar da arrumação de cada ano, queixas e comentários negativos virão aos montes.
Por isso, em todo desfile, ela é arrumada com as cores tradicionais, mas com acessórios novos, de acordo com a secretária Joanita Carvalho. “A cara não é muito bonita, não, viu? Mas a gente embeleza muito com peruca, fica chique”, diz Joanita. O nome, porém, é um mistério. De onde veio, afinal, Brígida? “Não é um nome muito corriqueiro. É mais exótico”, admite.
Em uma busca rápida pelo nome de Brígida na internet, os resultados são escassos. Alguns artigos acadêmicos, vídeos e um ou outro artigo de opinião. Em um dos sites, o autor associa Brígida - a cabocla - a Brígida do Vale, uma das mulheres que lutou ao lado de Maria Felipa, na Ilha de Itaparica. Além de nenhum registro histórico apontar essa conexão, moradores de Saubara ouvidos pela reportagem também conhecer essa teoria.
Isso não quer dizer que não existam outros palpites. A hipótese levantada pela pesquisadora Vanessa Orewá, porém, está ligada à religiosidade. “Tenho uma leitura que vai também a partir da espiritualidade, referente a Santa Brígida, que é uma santa guerreira”, explica. O próprio nome Brígida, que tem origem celta, significa forte e poderosa.
Casal
Brígida nem sempre foi a única cabocla do desfile. Por anos, ela esteve acompanhada de um caboclo. E, assim, o cortejo seguia o casal, assim como é feito em Salvador. Em algum ponto, porém, o caboclo foi enviado a outra cidade. Há quem diga que foi dado como presente, de forma diplomática, e há quem acredite que se tratou de um empréstimo nunca devolvido.
A partir daí é ela que deixa de ser uma cabocla para se tornar Dona Brígida, a Cabocla de Saubara. O título ‘dona’, inserido ali para cumprir sua função de demonstrar respeito e cortesia, é frequentemente removido. Brígida é tão gente que pode ser tratada diretamente pelo prenome.
"Brígida é um apelido carinhoso dado pela comunidade para uma figura que pode ser importante. Para não chamar de caboclo ou cabocla, que é um termo genérico, ela tem um nome", pontua o professor Rosildo do Rosário, também nativo de Saubara e mestre em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas pela UFRB.
Os antepassados consideravam o 2 de Julho como o momento em que a vida surge, em Saubara. Nesse aspecto, outra personagem surge na história: Dona Domitila da Paixão, uma antiga moradora que, no início do século 20, foi uma das principais organizadoras dos festejos da Independência, teria comprado a primeira estátua da Cabocla.
Essa história, porém, não tem tanto respaldo dos locais. O que se sabe sobre Domitila, de fato, é que uma frase que permeia as comemorações é atribuída a ela até hoje. "Se o 2 de Julho morrer, o que será de nós?", teria dito.
Família
Durante o ano, Brígida fica em exposição em um local no prédio da Secretaria de Cultural. Mas, nos dias que antecedem a festa, é como se a atmosfera mudasse, na opinião do professor Rosildo do Rosário. "Tem algo mágico que você percebe na comunidade. A musicalidade aflora, as escolas e os estudantes aguardam esse dia. E as pessoas que mais se empenham acabam se intitulando descendentes de Brígida", conta.
Esse movimento é ainda mais forte entre as mulheres. Com maior ou menor proximidade com a organização da festa, elas são as ‘Netas de Brígida’. De acordo com a historiadora Vanessa Orewá, muitas são responsáveis por manter o sentimento de pertencimento. "Óbvio que tem uma vanguarda das mulheres como as caretas do mingau, mas esse sentimento de aclamação de Brígida pelas mulheres é geral".
Para ela, hoje, Brígida é um conjunto de relações culturais da cidade que, além de representar um marco e uma personagem da história da Bahia, tem o aspecto do poder feminino. "Não é só a mulher guerreira, mas também a mulher que é liderança. Para ser liderança, você não precisa ser completamente guerreira, embora um aspecto figure no outro. Mas essa imagem da mulher que vence é celebrada", acrescenta.
Para outros moradores, a Cabocla também é uma referência dos ancestrais que lutaram em Saubara. "Essa figura traz essa representatividade da materialização da presença física desses ancestrais, que viveram a escravização e lutaram durante esses episódios", opina o professor Rosildo do Rosário.
A programação dos festejos pela Independência em Saubara começa neste domingo (30), com a chegada do fogo simbólico, ao meio-dia. Nesta segunda, a partir das 19h, Brígida será levada do Pavilhão Cândido Mendes, no bairro da Rocinha, para o espaço de eventos Ponciano Ribeiro. As Caretas do Mingau saem a partir das 2h da manhã desta terça-feira (2) e o desfile cívico com participação de Brígida está previsto para começar às 14h.
Caretas do Mingau representam antepassadas que assustavam portugueses
Às 2h da manhã de todo 2 de Julho, as ruas de Saubara recebem um grupo de mulheres vestidas de branco, cobrindo o rosto e carregando panelas. São as Caretas do Mingau, movimento cultural que celebra justamente as caretas originárias, consideradas uns dos agentes mais importantes das lutas pela independência no município.
Entre 1822 e 1823, um grupo de mulheres de Saubara saía assim - totalmente vestidas de branco - para assustar os portugueses. Fingindo ser assombrações, elas afugentavam os colonizadores para, assim, conseguir levar comida para os homens de suas famílias que estavam entre os combatentes da guerra.
A tradição de celebrar as antecessoras é centenária e, hoje, permanece com um grupo com cerca de 20 mulheres. A historiadora Vanessa Orewá, que estudou as caretas em sua pesquisa de mestrado, conta que a integrante que, por muito tempo, foi a mais velha do grupo, morreu no ano passado, com mais de 90 anos. Antes dela, sua mãe já integrava o movimento.
“A gente não conseguiu precisar se os festejos são de 150 ou 200 anos, algo mais próximo a 1823 mesmo”, diz ela, que, no ano passado, participou da organização. “Vejo as Caretas do Mingau como multiartistas, mas também como u grupo de estratégia cultural, no sentido de que essa prática vai passando de geração em geração”.
As mulheres do grupo saem cantando e relembrando a história pelas ruas da cidade. Nas panelas, carregam mingaus de tapioca e milho. Em cada trecho do trajeto, oferecem os mingaus, enquanto sacodem chocalhos.
Para Vanessa, elas também são professoras. “Elas são as responsáveis por contar, para a cidade, a história da vitória dessa guerra na Bahia. Se a gente for pensar na rua como essa escola, elas ensinam isso a céu aberto, de madrugada. Por isso, é um espaço revolucionário de conhecimento”, analisa a historiadora.
Na madrugada do dia 2 de Julho, as caretas ficam nas ruas até encontrar a Cabocla Brígida, o que normalmente acontece por volta das 5h da manhã. “A gente vai até a entrada da cidade, ao encontro dela, e finaliza o cortejo cantando sambas que, nas religiões de matriz afroindígena, são conhecidos como samba de caboclo. A gente canta ‘o que viemos fazer? Vamos saudar a cabocla’. Depois , encerramos o cortejo”, explica.