Tem algodão baiano no fio egípcio: saiba por que o mercado mais exigente do mundo está de olho no Oeste

De forma inédita, 500 toneladas do produto foram exportados pelo Porto de Salvador para o Egito

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  • Donaldson Gomes

Publicado em 18 de setembro de 2024 às 16:20

Algodão baiano é normalmente colhido entre os meses de março e julho Crédito: Divulgação Abapa

O melhor algodão do mundo precisa das estações bem definidas do cerrado baiano. Tanto do período chuvoso, para o seu plantio, quanto da época seca para a colheita, quando até as nuvens no céu do Oeste são raras de se ver. Mas a verdade é que colocar no mercado um produto com qualidade até para ser usado no famoso e exigente mercado egípcio está longe de ser apenas consequência das condições naturais. Tem muito trabalho e investimentos para fazer com que a pluma do algodão seja retirada do capulho, o invólucro espinhoso que chega a lembrar uma flor, e chegue ao mercado externo com a brancura característica e a estrutura das fibras preservadas.

Quem vê aquelas máquinas gigantescas passando por um tapete branco sem fim pode ter dificuldades para perceber, mas a produção de algodão é um trabalho que requer um manejo refinado e cuidado em cada uma das etapas de produção. Delicadeza é possivelmente uma palavra adequada para descrever o que precisa ser feito para conseguir o produto com a melhor fibra do mundo, com uma cor intensa, além de espessura e comprimento adequados.

Há quase dois meses, o Porto de Salvador realizou uma operação que ainda é incomum, mas que diferentes players na cadeia de valor desejam ver acontecer com mais frequência. O algodão produzido em Luís Eduardo Magalhães (LEM) foi exportado pela primeira vez para o Egito – famoso, entre outras coisas, pelo melhor algodão do mundo. A operação aconteceu pelo terminal de contêineres, o Tecon Salvador, do grupo Wilson Sons, com o embarque de 2.500 fardos da pluma do algodão, o equivalente a mais de 500 toneladas do produto.

Parafraseando Neil Armstrong, foi um pequeno passo para a região que é a segunda maior produtora de algodão do Brasil. Também foi um pequeno passo para o principal porto do Nordeste brasileiro. Mas, sem dúvidas, é um grande passo em direção ao desejo de produtores rurais, operadores portuários, governos e de outros elos da cadeia de valor: escoar os produtos baianos pela Bahia.

A participação da Bahia nas exportações brasileiras cresce ano após ano, de acordo com dados da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex Brasil). Em 2020, o estado representava 18% nas exportações, e, para a safra atual, o percentual chegará a 21%. Dois terços da produção abastecem o mercado interno nacional, enquanto o excedente é enviado para o exterior.

O Estado da Bahia tem a possibilidade de aumentar a área para plantação de algodão em 10% a 15% nos próximos anos. Os principais gargalos estão relacionados à questão logística para escoamento da safra sem prejuízos de prazos para os clientes internacionais, avalia Rafaela Albuquerque, analista de Agronegócio da Apex Brasil. Segundo ela, a Apex, em parceria com a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), promove internacionalmente o algodão brasileiro, por meio do Projeto Cotton Brazil, destacando sua qualidade, sustentabilidade e padrão tecnológico.

Entre as conquistas do projeto até o momento estão a participação em eventos internacionais, missões de visita a compradores no exterior e recepção de industriais estrangeiros ao Brasil, parcerias com entidades asiáticas, divulgação com foco em inovação, sustentabilidade e manejo biológico, além do avanço em indicadores de sustentabilidade da cotonicultura brasileira e certificação de agricultura regenerativa. “O Brasil é atualmente o segundo maior exportador mundial do setor, com exportações da ordem de US$ 3,07 bilhões em 2023, dos quais 70% são gerados pelas empresas apoiadas pelo projeto Cotton Brazil”, destaca.

O excedente do algodão é enviado para a exportação. Há alguns anos, produtores e entidades voltadas à promoção das exportações, como a Apex Brasil, passaram a apresentar o produto nacional em outros países, o que iniciou um processo de abertura de mercados. Hoje, 9 países compram 95% do algodão brasileiro, liderados pela China.

Equação baiana

Luiz Carlos Bergamaschi, presidente da Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa), diz que a qualidade do algodão baiano se dá por uma equação que leva em conta desde características próprias da região Oeste a até um trabalho intensivo de melhorias por parte dos produtores. “Você tem aquela pluma branca, com uma cor bastante intensa, com um visual muito bonito, por conta da ausência de chuvas no período da colheita”, explica Bergamaschi.

Luiz Carlos Bergamaschi, presidente da Abapa Crédito: Divulgação Abapa

A outra parte do trabalho depende muito de análises laboratoriais. Como se trata de uma fibra natural, sujeita a diversos fatores externos, o manejo da produção é fundamental. Plantar no momento certo e utilizar as melhores práticas de produção, desenvolvidas com muitos anos de pesquisas, são etapas fundamentais. “O que nós queremos é que a fibra tenha comprimento, espessura e coloração adequados”, explica Bergamaschi. “No início de todo este processo está a escolha das variedades”, diz. Parece simples, mas não é: “Temos algumas variedades que possuem melhor qualidade e outras, menos, porém estas são as mais produtivas”, explica.

“Nem sempre se consegue conciliar produtividade com qualidade, mas para isso nós temos a evolução genética, estudos de biotecnologia que nos trazem este resultado. Nós, como produtores, sempre iremos escolher a melhor qualidade com a maior produtividade”, explica.

Passado o plantio, normalmente entre os meses de novembro e janeiro, o desafio de manter a qualidade segue como prioridade. Isso passa por um trabalho para obter a melhor regulagem das máquinas e beneficiamento adequado, para manter a integridade da fibra, colhida entre maio e julho. “Tudo o que nós fazemos nas fazendas é para evitar que a fibra seja danificada, para preservar as características que nós conseguimos no plantio”, explica Bergamaschi. A Abapa possui hoje o maior laboratório de qualidade da América Latina, onde as fibras são analisadas e certificadas de acordo com os parâmetros internacionais.

Maior laboratório de análises do algodão na América Latina, em Luís Eduardo Magalhães Crédito: Divulgação Abapa

O algodão é produzido em 75 países, mas grande parte da produção mundial ainda é feita de maneira manual, sem a utilização de toda a tecnologia que pode ser encontrada nas fazendas brasileiras. “Essa inovação toda é fruto da agricultura brasileira, é um sistema produtivo nosso, inclusive com um grande cuidado ambiental, respeito ao código florestal. O Brasil tem uma tecnologia única na agricultura tropical”, orgulha-se o presidente da Abapa.

O algodão bruto foi responsável por 5,5% das exportações baianas em termos de valor, com US$ 625 milhões, segundo dados do Comex Stat, sistema para consultas e extração de dados do comércio exterior brasileiro, mantido pelo Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio (Mdic), em 2023. O produto foi o quinto mais enviado para o exterior, atrás apenas de óleos combustíveis, soja e outros alimentos para animais e celulose.

No mesmo período, o Brasil exportou pouco mais de US$ 3 bilhões do produto. Com uma participação de 20,3% do total, a Bahia ficou atrás apenas do Mato Grosso na produção da commodity agrícola, mas à frente de São Paulo, Goias e Maranhão – os outros estados que concentram a produção da pluma.

Os principais destinos foram a China, com quase 50% do total, seguida de Bangladesh, Vietnã e outros países asiáticos. Na Europa, a Turquia surge como destino de 8,24% da produção nacional, enquanto países como Itália, Portugal e Alemanha não alcançaram nem 1% do total.

Novo ciclo

Pode ser novidade para os mais novos, mas o Brasil já foi um grande produtor de algodão no passado, chegando a alcançar uma área de 4 milhões de hectares. Era uma produção manual e sem os recursos tecnológicos atuais. “Nos 4 milhões de hectares do passado, a gente produzia 700 mil toneladas, hoje com menos da metade desta área utilizada, a gente consegue produzir mais de 3 milhões de toneladas. Se plantava em muita área e se produzia muito pouco”, compara Bergamaschi. “Somos os maiores produtores de quilos de algodão por hectare no mundo. Conseguimos um resultado que é o dobro do que se faz nos Estados Unidos”, afirma.

Outra característica muito forte é a preocupação com a sustentabilidade. Atualmente, 86% do produto nacional já possui certificação com o selo ABR, de Algodão Brasileiro Responsável. A certificação avalia 183 itens – alguns inegociaveis, como o que proíbe o trabalho análogo à escravidão e de cuidados ambientais. No primeiro ano, é preciso atingir 85% dos itens e a cada ano vai aumentando, até a exigência de 95% de conformidade. Segundo o presidente da Abapa, os critérios são tão rígidos que todos os produtores que se adequam às exigências nacionais automaticamente estão aptos para a certificação internacional. “O produto brasileiro atende todos estes itens, que superam inclusive a certificação internacional (BCI), o que faz com que o produto aceito aqui no Brasil esteja automaticamente pronto para ser certificado lá fora”, afirma.

“O algodão brasileiro começou a ganhar confiança no mercado internacional”, conta Bergamaschi. “Além disso, todos os anos, trazemos em torno de 25 compradores internacionais para conhecerem o Brasil, desde a propriedade até a indústria algodoeira, e conheçam todo o processo”, explica. “A chegada no Egito, graças a um trabalho do Ministério da Agricultura, para abrir este mercado, acabou se tornando um marco. É um embarque pequeno, mas está levando o algodão baiano para um mercado que é conhecido pela sua qualidade”, comemora.

Praticamente todo o algodão baiano sai pelo Porto de Santos por conta de uma estrutura que já está montada. De Luís Eduardo Magalhães para Santos são quase 2 mil quilômetros, enquanto a distância entre a cidade no Oeste até Salvador é de apenas mil quilômetros. “O que está se buscando é utilizar a estrutura que Salvador tem, que começa pela Baía de Todos os Santos e o Tecon, que é muito eficiente, para desenvolvermos uma alternativa mais próxima”, diz Luiz Carlos Bergamaschi.

Algodão baiano
Rotas do algodão baiano Crédito: Ilustração Thainá Dayube/CORREIO

O desenvolvimento de uma cadeia logística especializada é uma grande preocupação do setor. Tudo o que os produtores menos desejam é que o algodão saia de suas fazendas com plumas alvas e cheguem ao destino final irreconhecíveis. Para acabar com esta sensação, a Abrapa criou uma versão logística da certificação de qualidade, a ABR Log, que define as regras para o manuseio dos produtos.

Este ano, a área plantada na Bahia é de 345 mil hectares, com incremento em relação ao ano passado. “Tivemos um plantio desafiador com pouca chuva e uma distribuição irregular”, explica Bergamaschi. Segundo ele, a estimativa é de uma produtividade de 312 arrobas por hectare, com 666 mil toneladas do produto em pluma. “É uma boa safra”, acredita. “Precisamos ter produtividade porque é uma lavoura mais cara, em comparação com soja e milho”.

Nacionalmente, o cenário para a cultura é de um aumento no volume de produção de 22,72% em 2023, acompanhado por uma queda de 24,77% nos preços, de acordo com dados do PIB do Agronegócio, feito pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), em parceria com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Esalq/USP.

Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o crescimento da produção reflete os avanços da área e da produtividade, configurando-se como a maior safra da história. O ganho de produtividade se deve tanto às condições climáticas favoráveis, quanto à implementação e aprimoramento de tecnologias da produção, aponta a companhia.

Entre as consequências do avanço da cultura no Oeste estão melhores retornos financeiros para produtores e para a região, uma vez que a produção agrícola atrai empresas que atuam no beneficiamento da cultura, chamadas de algodoeiras. Além disso, a produção das plumas auxilia na manutenção das boas condições da terra, com o processo de rotação de cultura, quando o produto é usado como alternativa a soja e milho. “O algodão tem proporcionado melhoria na qualidade de vida das pessoas”, avaliou o prefeito de Luís Eduardo Magalhães, Júnior Marabá, durante o lançamento da próxima edição da Bahia Farm Show, que acontece na cidade entre os dias 11 e 15 de junho.

Cultivo de carga

Há aproximadamente dez anos, o Tecon Salvador começou a preparar o terreno para o algodão passar cada vez mais por Salvador rumo ao exterior. “Dá muito orgulho ver o algodão que é produzido na Bahia, mas queremos ter a honra de nos tornarmos a porta de saída dele. Para a Wilson Sons, este é um mercado interessante porque tem uma regularidade na movimentação e um valor agregado importante”, explica Guilherme Dutra, diretor comercial do Tecon Salvador.

As primeiras operações significativas pelo Tecon começaram em 2016, mas por incrível que pareça, o sucesso da movimentação quase inviabilizou a operação. “Em 2020, as tradings e exportadores apostaram mais na saída por Salvador e a retroárea não conseguiu absorver todo o volume. Houve problemas, que acabaram afugentando as cargas”, lembra. Do equivalente a 2,5 mil contêineres, a movimentação no terminal caiu para 530 unidades e só em 2023 retomou o ritmo previsto, com um recorde de 3,2 mil contêineres.

Mas apesar do crescimento, os resultados ainda são considerados muito aquém do potencial que o Tecon possui. “Nós acreditamos que podemos atender bem um mercado de 24 mil contêineres por ano”, aposta. Dutra conta que a Bahia possui outros diferenciais, além da proximidade.

“Hoje já temos rotas de navegação definidas, uma estrutura retroportuária e portuária, que são condições que nos permitem oferecer ganhos de escala para todos que quiserem apostar em nós”, diz. Segundo Guilherme Dutra, apesar de um “desejo genuíno” de atrair a carga, a grande prioridade é evitar outra ruptura no serviço, como as que aconteceram em 2021 e 2022.

“Temos que concordar que Santos é o maior porto da América Latina, não apenas pela localização. Nós buscamos entender no que eles são bons e tentamos replicar. No que já somos bons, o objetivo é melhorar para atendermos os produtores desde a fazenda até a borda do navio”, afirma.

O terminal se adequou às exigências para a estufagem do algodão, às exigências fiscais da Receita e se certificou com o ABR Log.

Tomando como base o desempenho até março, quando movimentou pouco mais de 1,6 mil contêineres com algodão, a ideia de encerrar o ano com um crescimento acima de 100% na movimentação é vista como factível. Delicadamente, as fibras baianas começam a se espalhar pelo mundo.

O melhor algodão do mundo em sete passos

1 - Plantio - O algodão baiano é plantado na época chuvosa e colhido no período seco, o que permite que as plumas fiquem mais limpas e com a coloração branca desejada

2 - Manejo - Normalmente as variedades de melhor qualidade são as menos produtivas. O que se faz, com o apoio da genética e da biotecnologia no Oeste baiano, é o desenvolvimento de variedades com muita qualidade e maior produtividade

3 - Certificação - A Abapa, associação que representa os produtores baianos, possui o maior laboratório para a análise da qualidade e certificação de algodão da América Latina

4 - Colheita - Com uma produção bastante tecnificada, os produtores buscam sempre encontrar a melhor regulagem para os equipamentos de colheita, de maneira que eles mantenham a integridade da fibra.

5 - Algodoeiras - Nas estruturas industriais, o algodão é preparado para diferentes usos. Normalmente, o produto é limpo, separado de impurezas e reunido por tamanho e passa por um processo de cardagem (colocado na mesma posição).

6 - Transporte - O preparo para o transporte demanda cuidados em relação à umidade e para evitar a ação de pragas após a colheita. Além disso, em todo o processo é importante um monitoramento da temperatura, pois o superaquecimento pode danificar as fibras.

7 - Retroárea - A preparação da retroárea, um espaço que não precisa necessariamente estar dentro do porto, para a armazenagem temporária do produto é fundamental.