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Larissa Almeida
Publicado em 2 de novembro de 2024 às 05:00
Em dez anos de história, o Afro Fashion Day (AFD) não apenas foi vitrine das belezas negras da Bahia, como também serviu de motivação para renascimentos e coroação de trajetórias forjadas na luta pela autoaceitação, representatividade e dignidade social. A prova disso é que, nos bastidores do desfile da 10ª edição do evento, o que não faltaram foram modelos e estilistas emocionados ao relembrar o caminho trilhado até a passarela mais negra do Brasil.
A modelo Genê Góis, 33 anos, estava sentada no backstage em silêncio duas horas antes de desfilar. Quem a via de longe poderia confundir tanta resignação com nervosismo, mas a quietude tinha explicação: uma volta no tempo, mais especificamente para um ano atrás, quando ela, mesmo tendo sido classificada na primeira fase da seletiva do AFD, precisou ficar de fora para tratar o segundo diagnóstico de câncer de mama.
“Eu estava fazendo quimioterapia venosa e, no dia da segunda fase, estava hospitalizada e não consegui comparecer. No início foi um choque, porque fiz um tratamento em 2020 que foi o primeiro diagnóstico e, quando foi no ano passado, recebi a notícia de que tive câncer nas duas mamas. Então, em vez de me entregar, resolvi usar como resiliência [...] Esse ano eu disse que viria a todo custo e foi o que fiz”, contou.
A determinação de participar do Afro tinha origem no sonho de infância, já que Genê desde sempre foi amante da moda. “Sempre foi meu sonho ser modelo, mas falavam ‘você é gorda’, ‘você nunca vai desfilar’. Então, o Afro Fashion Day está sendo um renascimento para mim. É muito além do que as pessoas veem. É a primeira vez, inclusive, que eu desfilo para um evento grande em que as pessoas realmente se importam com o bem-estar dos modelos”, disse.
Para Kaio Cardeal, 22 anos, ser selecionado para o AFD pelo segundo ano consecutivo foi um triunfo sobre o passado. Isso porque, a infância do jovem foi marcada por insultos dos mais diversos tipos em razão do sobrepeso, que acabaram fazendo com que ele não aceitasse a própria imagem. Por isso, foi uma surpresa quando uma vizinha, que era líder de um projeto de moda, convidou-o para desfilar.
“Ela me viu na rua, no bairro do Calabar e me fez o convite. Eu não fui, porque tinha medo por conta do meu corpo. Eu tinha curvas, era gordo, sofria bullying na escola. As pessoas falavam que, se eu comesse demais, explodiria. Só que a tia Rejane [líder do projeto de moda] insistiu uma segunda vez para ir, e eu fui e gostei”, narrou.
Kaio participou, em menos de um ano, de três concursos de beleza e foi reconhecido pelo bom desempenho em todos eles. Enquanto tentava assimilar a mudança radical de vida, ele acabou se dando conta de que teve um olhar errado sobre si a vida inteira.
“Eu entendi que o corpo gordo também é bonito e isso abriu novos rumos na minha história. Mas continuou sendo difícil e fui colocado para fora de casa porque minha família não achava que a moda dava dinheiro. Hoje, moro sozinho e me sustento sendo vendedor e modelo. Depois que passei a me amar, isso é tudo o que importa”, frisou.
No caso da modelo Lavínia Borges, 23, o trajeto até o AFD incluiu dificuldades financeiras e abusos psicológicos. Ela, que desde a infância se lançou nas passarelas, se tornou uma mulher gorda e sofreu por isso. Quando se determinou a levantar a bandeira de modelo plus size, sofreu um duro baque ao não obter apoio das pessoas em que mais confiava.
Sem dinheiro para comprar um biquíni, ela recordou da ocasião em que marcou de se encontrar com um familiar, que prometeu ajudá-la, mas fez exatamente o oposto. “A pessoa me disse que eu não era competente e não tinha capacidade, e que não era para eu contar com a ajuda dela. Eu fiquei muito chateada, sem chão. Desisti do biquíni, mas fui para uma seletiva no mesmo dia, do jeito que deu”, lembra.
Contando com a solidariedade da produção e de alguns modelos que ouviram sua história, Lavínia não apenas foi aprovada no concurso, como também passou a desfilar em tantos outros. Em 2024, se tornou a primeira modelo plus size a ganhar o Beleza Black e, com o apoio da prima, do noivo e de novos amigos, conquistou um lugar na passarela do Afro Fashion Day pela segunda vez seguida.
A cabeça pensante – e a mão habilidosa – por trás das famosas pochetes do Afro Punk também foi um dos talentos presentes no elenco do Afro Fashion Day deste ano. Trata-se de Vinícius Carmezim, 36, que chegou cedo para assistir ao desfile e fez questão de ressaltar que a trajetória da Zie, marca de acessórios assinada por ele, é entrelaçada com a própria história.
“Eu cresci dentro do ateliê com a minha mãe, que era costureira e usava as costuras para sustentar os três filhos. Eu comecei a costurar na faculdade, só que empreender por necessidade não é fácil. As pessoas começam a desacreditar do trabalho. Minha mãe, inclusive, foi uma delas. Ela achava que ser costureiro não me levaria para lugar nenhum, mas eu disse que, se ela não me apoiasse, eu seguiria sozinho, mas que seria mais fácil com ela do meu lado. E então nos persistimos e já temos sete anos de marca, sendo seis no AFD”, comemorou.
Mário Farias, 55, que desde 2019 assina peças para o evento, pela segunda vez esteve também representando, junto de George Santana, 40, a marca de acessórios 'Tá Bom Pra Você'. Ele contou que, especialmente na época de produção para o AFD, passou por um dos períodos mais desafiadores da vida. "Ano passado foi muito especial, porque eu estava em tratamento de câncer de pele, então eu fiz uma peça de gotas, que representava cada gotinha que caía na minha veia. Então, o Afro Fashion Day representou um processo de cura para mim. Se eu não estivesse trabalhando naquela época, acho que não estaria aqui hoje", finalizou.
Leveza, movimento e transparência são três palavras que podem remeter às águas de Nanã, orixá dos lagos, da morte e da sabedoria, mas que casam bem com a expressão do primeiro ato do Afro Fashion Day. Na edição em que completa uma década, o evento de moda realizado pelo CORREIO começou as apresentações, na noite desta sexta-feira (1°), fazendo reverência à ancestralidade, sem perder de vista a sincronia com a música, tema deste ano.
Antes do início oficial, o prenúncio do espetáculo foi feito com o som dos tambores tocados pelos percussionistas. Depois, enquanto a melodia e a letra de Ponto de Nanã preenchiam a Praça 2 de Julho, que pela primeira vez foi palco da passarela mais negra do Brasil, os olhos das mais de 5 mil pessoas que marcaram presença no local se voltaram para a primeira modelo, que desfilou uma peça trabalhada com rechilier, semelhante as vestes típicas dos ilês – casas de candomblé.
Um mergulho no axé enquanto expressão de moda abarcou os looks brancos, que conseguiram transitar entre as propostas leves – como calça saruel, tecidos de malha e amarrações – e as mais carregadas de significados – como bordados, peças de caça e acessórios feitos de conchas. Ainda, houve espaço para a experimentação entre a ancestralidade forjada no encontro das diásporas.
Segundo Vander Charles, criador da marca Black Atitude, a ideia foi trazer uma mescla entre o tradicional e o contemporâneo em cada roupa. "Eu fiz uma roupa que remete ao hip hop e uma mistura de tecido cru com a calça saruel, que é uma conversa entre a África e a América do Norte", explicou.
Ao fim do primeiro ato, uma homenagem ao Ilê Aiyê, que completou 50 anos nesta sexta-feira, deu o tom para a parte Festiva do evento. O que se viu em seguida foi uma explosão de cores vivas, que foram desfiladas com peças extravagantes, acessórios de ouro e estampas que viajaram pelas identidades dos blocos afro de Salvador, desde o verde predominante do Malê Debalê até o colorido do Olodum – sem deixar de destacar, é claro, o perfil azeviche do Mais Belo dos Belos.
Por fim, o último ato explorou o contemporâneo, que deu espaço às produções coloridas, experimentais e afrofuturistas. Foi seguindo esse modelo que o estilista Silverino Ojú produziu uma peça que conversou com o subversivo e inovador, trazendo a mistura como força e tendo tudo isso traduzido em música, no remix de 'Billie Jean' com o swing baiano.