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Identidade negra a partir do vestir

Pesquisadora e designer Maria do Carmo Paulino partilha evolução do conceito de Moda Afro-brasileira na última década

  • Foto do(a) author(a) Luiza Gonçalves
  • Luiza Gonçalves

Publicado em 16 de novembro de 2024 às 08:01

Maria do Carmo Paulino dos Santos
Maria do Carmo Paulino dos Santos Crédito: Juliana Vasconcelos

A moda afro-brasileira parte de um olhar da moda que ultrapassa apenas o usual, a forma de vestir, e a vê como um agente social, uma forma de comunicar o eu para o outro e de expressar a identidade negra no Brasil. Estilo, modo de expressão e atividade econômica que une criadores pretos, consolidando-se com a passagem dos anos em redes criativas, movimento estético e transformação social.  

Para a pesquisadora e design Maria do Carmo Paulino dos Santos, a moda foi uma oficio herdado de sua mãe, que a formou costureira ainda adolescente, quando já trabalhava em fábricas. A vocação evoluiu tornando-se uma direcionamento na sua atuação profissional na vida adulta e encontrando-se com o debate racil e a luta pelo combate ao racismo no Brasil. Em entrevista ao CORREIO, ela partilha porque decidiu fazer da moda afro-brasileira uma objeto de pesquisa na sua trajetória acadêmica e como tem percebido a evolução dessa enquanto movimento e conceito na última década.

Maria do Carmo Paulino é designer de moda, mestre em Têxtil e Moda e doutoranda em Design pela FAU USP e em Comunicação e Semiótica pela PUC- São Paulo. Paulino é pesquisadora da moda afro-brasileira das décadas de 2010 e 2020, tendo lançado em 2022 a obra "Moda afro-brasileira é design de resistência na luta negra no Brasil".

Quais as principais mudanças na consolidação do conceito de moda afro-brasileira na última década?



Eu iniciei meus estudos na moda afro-brasileira porque comecei a me deparar com questões raciais num contexto em que a indústria da moda estava passando por uma reorganização com a globalização. Tivemos que nos reinventar com a terceirização. Eu me constituí como empresa e me vi travada com um portfólio belíssimo de desenhos e ilustrações, mas tendo muita dificuldade para me posicionar no mercado por questões raciais. Então, foi esse atravessamento, onde minha corporeidade chegou na frente, que me fez refletir sobre a moda afro-brasileira.

A partir de que momento esses estudos configuram-se no seu livro "Moda afro-brasileira é design de resistência da luta negra no Brasil"?

Eu comecei seguir o que Emmanuel Araújo estava defendendo quando ele desenvolveu a exposição Arte, adorno e artesanato no tempo da escravidão, onde trouxe o contexto dos artífices e da contribuição da mão negra em diversas áreas, inclusive nas têxteis e da moda, que não eram reconhecidas. Fui entender o contexto da indústria da moda, que nasce nesse berço escravagista, e aí comecei a elaborar minhas reflexões. Em 2016, entro na EACH, a Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, com um projeto sobre moda afro-brasileira, a partir da marcha do Orgulho Crespo, escrevendo minha dissertação de mestrado com o tema Moda Afro-Brasileira: Design de Resistência, Vestir como Ação Política. Em 2018 quando termino minha dissertação, já estavam acontecendo diversas manifestações do movimento negro e atividades similares a marcha, impulsionadas pelas redes sociais e que tinham a moda afro-brasileira estava muito presente. Você ia para as marchas, isso estava muito forte. E aí eu percebi que tinha um mercado muito efervescente.

Quais as principais mudanças na consolidação do conceito de moda afro-brasileira na última década?

Pesquisando sobre moda afro-brasileira ali em 2017, percebi que esse segmento já estava bem constituído, havia até mesmo instituto de pesquisa com isso muito bem demarcado nos anos 2000. Quando volto agora no meu doutorado para pesquisar de novo, vejo que nos anos 90 também já haviam publicidades, anúncios de ateliês de modelagem, costura, moda sob medida e estilistas que trabalhavam com o termo moda afro-brasileira. Os institutos de pesquisa identificam que tudo o que é produzido dentro do território brasileiro, que resgata a cultura afro-brasileira e é manifestado no vestir, trazendo elementos da cultura afro-brasileira, é identificado como moda afro-brasileira. Mas houve esse boom nas últimas duas décadas de fazer moda e expressar essa cultura afro-brasileira, simultaneamente ao impulso das redes sociais e ao protagonismo de muitos influenciadores e pessoas negras, que começaram a disputar sua alteridade nas redes, a criar seu perfil e a falar de seu próprio produto, vestindo-se com essa moda.

E quais foram os principais desafios?

O segmento de moda afro-brasileira só começou a existir com força porque o racismo no nosso país é tão institucionalizado, tão estruturado, que muitas pessoas negras da área da moda, que se viram sem oportunidade de trabalho, começaram a empreender. Só que empreender para nós não é de agora; é algo que vem desde nossa constituição enquanto sujeitos, desde que o Brasil é Brasil. Mas, recentemente, isso ganhou força novamente, porque a globalização possibilitou certo protagonismo. Acho que o maior desafio para nós, negros, que se viram com dificuldade de se posicionar profissionalmente e tiveram que se constituir como empresa, é manter a empresa, fazer o negócio girar, ter um produto bom que alavanque vendas, que se consiga produzir em larga escala, obter lucro e se desenvolver. Acho que o maior desafio ainda está na constituição desse empreendedor, que muita gente está chamando de afroempreendedor. Esse ainda é o maior desafio, porque os empreendimentos são pequenos, e a gente trabalha praticamente sozinho.

Como você definiria a moda afro-brasileira?

É uma moda que resgata a identidade e a cultura negra. É uma moda feita por pessoas negras. Ela vem das periferias, dos quilombos, dos terreiros, das marchas e das manifestações de resistência, trazendo elementos da cultura negra e afro-diaspórica. É alegre e colorida. É a moda que manifesta a identidade negra a partir do vestir.

O que você tem acompanhado no cenário nacional da moda afro-brasileira?

Eu sou uma cria da Feira Preta em São Paulo, que já tem mais de 20 anos e, para mim, é um evento de referência, com muitos empreendedores de diversos produtos que trazem a cultura afro-brasileira e afro-diaspórica. Tenho acompanhado o Afro Fashion Day na Bahia e outros eventos feitos por pessoas pretas, que têm uma constituição política e usam o vestir como ato político. A maioria dessas pessoas são criativas, desenvolvem sua própria moda e criam seus eventos por todo o Brasil. Isso é algo que a rede social possibilitou, essa comunicação em massa, onde cada um começou a se desenvolver a partir de seu local. Esses eventos são importantes para romper padrões, para a gente realmente se fortalecer enquanto rede, praticar o espírito da coletividade e fortalecer esse novo mercado que está aí. Acho que isso é o que importa.

Como você vê a relação entre moda, política e transformação social?

A moda sempre foi usada como um ato e um discurso político. Acho que a moda é estratégica nesse sentido, para poder revelar os invisibilizados, dar voz a quem não tem voz. As pessoas vão lá, criam suas ideias de vestir a partir das materialidades que têm. A moda dá voz a quem precisa de vez e visibilidade.

O Afro Fashion Day é um projeto do jornal Correio com patrocínio da Avon e Bracell, apoio CAIXA, Shopping Barra, Salvador Bahia Airport e Wilson Sons e apoio institucional do Sebrae e Prefeitura Municipal de Salvador.