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João Gabriel Galdea
Publicado em 1 de outubro de 2023 às 05:40
Quando Paul Thomas Anderson descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu um esboço de roteiro sobre a saga de “um ladrão que, depois de aplicar um super golpe, decide matar os dois comparsas para ficar com toda a grana.” Era esse o ponto de partida do longa que o diretor californiano, então com 23 anos, afirmou que iria rodar em Salvador. A revelação foi feita em entrevista exclusiva à repórter Neyse Cunha Lima, publicada neste CORREIO em 6 de setembro de 1993.
Sim, há exatas três décadas, um dos maiores cineastas da atualidade, hoje com 11 indicações ao Oscar acumuladas, caiu na esbórnia na Terça da Bênção, no Pelourinho, se apaixonou pela capoeira, pela cidade, e garantiu que voltaria para rodar a tal trama, que se desenvolveria da seguinte forma: “Um dos caras, na verdade, não morreu e, para se vingar, atrai o traidor para Salvador, para uma luta de morte. A luta, é claro, é a capoeira da Angola, de preferência em câmera lenta, segundo Paul”, escreveu a repórter sobre a descrição, já com detalhes técnicos, feita pelo tal Paul Anderson, após um papo no hotel Victoria Marina, na Vitória.
Fumando um Hollywood e tomando café pelando, PTA já estava há quase uma semana na capital baiana, onde desembarcou para participar de uma mostra de curtas americanos na Sala Walter da Silveira. Pra combinar com a cena registrada pela repórter, seu curta em exibição era ‘Cigarrettes & Coffee’, filme que daria origem a seu primeiro e aclamado longa, ‘Jogada de Risco’, lançado três anos depois.
A obra tinha grande elenco, com nomes como Samuel L. Jackson, Philip Seymour Hoffman e Gwyneth Paltrow, mas o cast que PTA escalaria para a Bahia não ficaria devendo em nada. “Como sempre costuma fazer quando começa um roteiro, o diretor já pensou até em quem chamaria para os papéis principais: John Malkovich, o inesquecível Visconde de Valmont, de Ligações Perigosas, e Gary Oldman, o Drácula de Coppola. É esperar para ver”, escrevia Neyse, que espera até hoje.
Na verdade, nem espera, porque mal lembra desse dia, e sequer sabia que o ambicioso Paul Anderson tinha metido um Thomas no meio e se tornado diretor de clássicos como ‘Sangue Negro’, ‘Magnólia’ e ‘Boogie Nights’. “Que legal! Não lembrava dessa matéria. E pra falar a verdade continuo sem lembrar”, admitiu Neyse, que vive desde 2004 em Barcelona, na Espanha.
“Lembrava que tinha entrevistado um moleque que conseguiu a grana para o seu projeto jogando em Las Vegas, mas não que ele era cineasta, e muito menos que era PTA. A única coisa que lembro além dos dados é que ele era bem simpático e animado”, recorda sobre o hoje cinquentão que no, ano passado, foi indicado a Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original e Melhor Filme no Oscars, com ‘Licorice Pizza’.
Cobrança
A volta de PTA para gravar na Bahia não seria nenhuma grande novidade para o Pelô, afinal, o sítio histórico sempre foi locação para grandes produções: em meados dos anos 70, por exemplo, três longas baseados nos livros de Jorge Amado estavam sendo rodados ao mesmo tempo, por lá, sob as batutas de Bruno Barreto (‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’), Nelson Pereira dos Santos (‘Tenda dos Milagres’) e do francês Marcel Camus (‘Os Pastores da Noite’). Há relatos, inclusive, de confusão entre as equipes de filmagem.
Mas, enquanto seu Paulo não vem cumprir seu compromisso com a cidade (assim como Spike Lee, que há 10 anos gravou um documentário sobre o Brasil, com foco na Bahia, e até hoje não saiu), cumpre contar como Paulinho relatava os seus primeiros passos como cineasta.
Na reportagem intitulada ‘Cineasta dividido entre filmes e jogos de azar’, Neyse revela de onde veio o capital inicial para PTA fazer seu primeiro curta, já se credenciando como um dos mais promissores diretores de sua geração.
“Os US$ 13 mil em economias que a família Anderson tinha depositado num banco da Califórnia no ano de 1992 tinham um destino mais que definido: pagar os dois primeiros anos de faculdade do filho Paul. Nem sempre, no entanto, as coisas são como os pais imaginam, e num belo dia o pequeno Paul sugeriu que lhe passassem a grana para que ele pudesse investir tudo em seu primeiro filme”, inicia o texto.
“Além da cara de pau, Paul trazia consigo suas próprias economias: US$ 2 mil suados mais a considerável quantia de US$ 7 mil ganhos nos dados num cassino de Las Vegas. E apesar dos protestos da mommy, daddy não pôde dizer que não. Quem conta essa história é o próprio Paul Anderson, acomodado numa das mesas do Victoria Marina, enquanto beberica uma xícara de café preto e fumegante e acende um cigarro Hollywood”, como eu já havia contado.
A jornalista relata ainda que o “garotinho magro de 23 anos, com óculos de grau e cabelo de skatista” é um “romântico aficionado por jogos de azar”, e também vinha daí seu ganha-pão, na época, como ele mesmo admitia.
“Há cerca de um ano, enquanto espera o orçamento de ‘Sydney’ [outra base para ‘Jogada de Risco’], ele vive exclusivamente às custas dos cassinos de Las Vegas e Reno, onde joga crabs regularmente para manter a vida de solteiro num apartamento em Los Angeles. ‘Apostar é uma emoção quase tão intensa quanto filmar’, ele diz. O risco, no entanto, parece ser calculado. ‘Você não pode driblar a sorte, mas ao menos pode não ser idiota quando aposta’”, revelava o jogatineiro, que tinha como tática principal apostar pouco e ficar no jogo só enquanto conseguia a média de US$ 35 por hora. “É o que se ganha nos melhores trabalhos não qualificados e é o que me basta”.
Nos basta, Mr. Ghosting, que a sua trama fantasma na Bahia se torne realidade. A propósito, tentei cobrar A dívida com PTA, mas nem contato com o agente consegui. Vou continuar tentando, mas caso o encontrem tomando um menorzinho ou fumando algo por aí, de bobeira, refresquem a memória dele.