Usada na independência, vacina contra a varíola levou à erradicação mundial da doença

Imunizante chegou à Bahia em 1804; Marquês de Barbacena pagou para que sete crianças escravizadas fossem da Bahia a Lisboa para serem vacinadas

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  • Thais Borges

Publicado em 30 de junho de 2024 às 11:00

Vacina contra a varíola foi inventada por Edward Jenner
Vacina contra a varíola foi inventada por Edward Jenner Crédito: Reprodução/Wikicommons

O caminho da vacina contra a varíola foi longo antes de chegar ao Brasil. Isso porque ela foi o primeiro imunizante já produzido artificialmente na história. Começou com o médico inglês Edward Jenner que, em 1796, percebeu que pessoas que ordenhavam vacas com varíola não desenvolviam a doença, se tivessem sido infectadas pela forma animal anteriormente.

Assim, ele retirou o pus da mão de uma pessoa que ordenhava vacas e havia contraído a varíola bovina e, na sequência, aplicou em uma criança de oito anos. Eventualmente, o menino, James Phipps, contraiu a varíola animal, mas só teve sintomas leves.

Algumas semanas mais tarde, o médico fez mais um experimento com a mesma criança: inseriu o líquido de varíola humana em James, que nunca contraiu a doença. A conclusão foi de que ele estava imunizado.

Foi graças à invenção de Jenner que, quase 200 anos depois, a varíola se tornaria a primeira doença erradicada por vacina no mundo. O certificado internacional de erradicação veio em 1980, pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Antes disso, por séculos, a varíola tinha sido considerada um mal do qual poucos conseguiam escapar. Na Bahia colonial, esteve presente desde os primeiros anos. Havia recomendação de quarentena para navios que aportavam no Brasil com infectados, mas não foi suficiente para conter o vírus. A propagação era fácil - tanto por gotículas e aerossóis quanto pelo contato com as lesões e com objetos dos infectados.

“A grande mortalidade de escravizados, nos vários ciclos epidêmicos, resultava na paralisação dos engenhos de açúcar e da produção agrícola em geral, desabastecimento, pobreza, fome e mortes”, explica a historiadora Christiane Maria de Souza.

Antes da vacina, em Portugal, assim como na maioria dos países, ainda usava-se a chamada ‘variolização’, segundo a historiadora Maria Renilda Barreto. Essa técnica foi inventada séculos antes pelos chineses e consistia em implantar pústulas de varíola em pessoas saudáveis, para que desenvolvessem uma forma branda da doença e ficassem protegidas a partir daí.

No mesmo ano em que Edward Jenner criava a vacina antivariólica, em 1796 foi organizado, em Lisboa, um hospital especial para a variolização.

Depois de três anos com essa experiência, as autoridades de saúde reconheceram que as crianças inoculadas estavam imunes ou tinham apenas erupções leves. "Essa prática de variolização se estendeu para todo o império português na América, África e Ásia mas ficou restrita aos militares, aos presos, aos órfãos. Estávamos longe da imunização da população", diz Maria Renilda.

Chegada

Ainda que tenha sido criada em 1796, a vacina antivariólica só chegou aqui quase 40 anos depois - e graças a iniciativas individuais, de acordo com a pesquisadora Christiane de Souza. O primeiro registro que se tem é de que, em 1804, Felisberto Caldeira Brant Pontes Oliveira e Horta pagou para que sete crianças escravizadas que ainda não tinham sido infectadas por varíola viajassem da Bahia até Lisboa, em Portugal. O objetivo da viagem era fazer com que elas fossem vacinadas lá.

“Uma destas crianças seria vacinada sete dias antes do retorno do navio à Bahia e as demais seriam inoculadas, braço a braço, no decorrer da viagem de volta, para garantir que a vacina não se deteriorasse e perdesse a eficácia”, acrescenta a pesquisadora.

Felisberto, que depois se tornaria o Marquês de Barbacena, não foi o único a patrocinar uma empreitada como essa. Como ele, outros comerciantes começaram a financiar viagens semelhantes porque o prejuízo vinha sendo grande. Uma vez que os escravizados adoeciam, a produção tinha que ser interrompida.

No entanto, quando as crianças retornaram, neste primeiro episódio, Felisberto e seu filho de cinco anos foram os primeiros a se vacinar em solo baiano. Os dois esperaram o navio ainda no cais. “Não havia restrição de idade, nem de gênero, nem de nada para tomar a vacina. Ela era muito recomendada”, explica.

Só que, ainda que a vacinação fosse estimulada, nem todo mundo queria. Primeiro porque ela deixava uma espécie de ranhura no braço e exigia uma revacinação como reforço. Nem todo mundo voltava para outra dose. Além disso, algumas pessoas diziam que tinham pegado outras doenças pela vacina.

Isso, de fato, poderia acontecer - não pelo vírus, mas porque o material não era descartável, como acontece com as agulhas de hoje."Aquela mesma lanceta que inoculava a vacina passava de braço a braço. Às vezes, nesse processo, eram passadas doenças transmissíveis, como a sífilis e outras", diz Christiane.

A partir daí, a vacina contra a varíola faz a Bahia ganhar um novo status no Brasil. De acordo com Christiane, desse período em diante, a província se tornou um centro produtor e distribuidor da vacina para outras capitanias. Entre 1804 e 1809, os imunizantes saíam daqui para o Rio de Janeiro, Maranhão, Pernambuco, São Paulo e Rio Grande do Norte, e até para Angola. Além disso, a Bahia também divulgava informações sobre como o imunizante deveria ser aplicado.