Últimos retoques são feitos nos caboclos para o desfile de 2 de Julho

As peças, indispensáveis durante o feriado, estão guardadas no Memorial 2 de julho, localizado na Lapinha

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  • Yasmin Oliveira

Publicado em 27 de junho de 2024 às 06:00

Os Caboclos serão vestidos e ornamentados na véspera do desfile
Os Caboclos serão vestidos e ornamentados na véspera do desfile Crédito: Ana Lucia Albuquerque/CORREIO

Sem as carruagens que levam o Caboclo e a Cabocla, não existiria o desfile de 2 de Julho. As peças, que foram completamente restauradas pela primeira vez no ano passado, em celebração aos 200 anos da Independência do Brasil na Bahia, passam por pequenos retoques antes de serem expostas para o público no Campo Grande, na próxima terça-feira (2).

As carruagens ficam guardadas no Memorial 2 de Julho, localizado na Lapinha, que está fechado para visitação no período que antecede a celebração da Independência da Bahia. Há dez dias, a equipe de conservação e restauração comandada pelo artista plástico José Dirson Argolo, professor da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal da Bahia (Ufba), começou os trabalhos para o desfile deste ano. Há 27 anos, ele é o responsável escolhido pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) para realizar, anualmente, o serviço de preservação das imagens.

Quem consegue espiar pelas grandes portas do local, observa uma cena rara: o Caboclo e a Cabocla, tão marcantes para a iconografia baiana, quase totalmente nus. Apenas com seus cabelos e as roupas originais esculpidas na madeira. A indumentária clássica, que inclui cocar, penas, braceletes e colares, será colocada apenas na véspera do feriado, segundo José Dirson.

José Dirson é o restaurador das peças há 27 anos
José Dirson é o restaurador das peças há 27 anos Crédito: Ana Lucia Albuquerque/CORREIO

A existência do Memorial 2 de Julho, inaugurado em 17 de julho de 2023, garantiu um trabalho mais tranquilo para José e sua equipe, pois a inexistência de goteiras, ventilação e da umidade em excesso diminuiu a quantidade de mudanças causadas nas peças. José conta que, pela falta de cuidados no local anteriormente, o movimento de dilatação e retração na madeira que causa fissuras e rachaduras ocorria com mais frequência.

“Antes, quando terminava o desfile, as carruagens com os caboclos vinham para cá e esse espaço só era aberto uns 15 dias antes do 2 de Julho para nossa equipe vir e prepará-los. Desta vez, foi um trabalho de uns quatro dias fazendo uma limpeza com produtos especiais de restauração e reintegrando algumas pequenas partes do douramento que estavam estragadas”, explica José.

Pela exposição que as carruagens sofrem durante o desfile, o maior trabalho será mesmo quando eles retornarem ao memorial. Os danos ocorrem devido a quantidade de ladeiras, durante a locomoção pelas ruas de Salvador, e pela chuva. Além do peso em excesso que as oferendas trazem. De pedidos de casamento a agradecimentos, ambas as carruagens ficam lotadas de presentes como pequenas casinhas de quem conseguiu conquistar a casa própria.

“Certamente quando elas voltarem, nossa equipe vai estar aqui presente para fazer a limpeza, remover o arroz que jogam e as oferendas, fazendo tudo com o maior respeito. Vamos tirar tudo e limpar. Se alguma coisa estragar, a gente vai dar um pequeno retoque”, adianta.

Uma grande modificação feita pelo artista foi a substituição de uma importante peça de sustentação que sofreu uma rachadura. “Nós desmontamos, fizemos uma exatamente igual em madeira de lei e recolocamos. Aqui, é onde amarram umas cordas e é onde recebe todo o peso do carro. Ela foi levada para o meu atelier, onde foi refeita e meu mestre carpinteiro, José Raimundo, há uns quatro dias, veio aqui e repôs no lugar”, explica.

A peça de sustentação da carruagem do Caboclo foi trocada
A peça de sustentação da carruagem do Caboclo foi trocada Crédito: Ana Lucia Albuquerque/CORREIO

Outra rachadura, desta vez no ombro do Caboclo, também foi restaurada e já não é mais visível. Para o artista, o trabalho de conservação está quase se tornando rotineiro e os caboclos não são mais tão trabalhosos, após a grande restauração do ano anterior.

José Dirson acompanha o desfile todos os anos e segue da Lapinha até o Campo Grande junto com as carruagens. “Para mim, é emocionante fazer esse trabalho todo ano. E mais emocionante ainda é vir para cá no dia 2 de Julho, cedinho, para ver os carros saírem e ver o tempo todo eles serem alvos de tantas homenagens pelo povo da Bahia. Porque, com o passar dos anos, o Caboclo e a Cabocla deixaram de ser apenas representante dos heróis nacionais e passaram a ser entidades religiosas, então para o pessoal do culto afro-brasileiro, eles são orixás”, relata.

201ª celebração da Independência da Bahia contará com oito dias de atividades em celebração a expulsão das tropas portuguesas do território baiano. Como manda a tradição, a festa contará com o desfile cívico, além de concursos de fachadas, de fanfarras pelo percurso e trará como tema “2 de Julho: Povo Independente”. 

“A data histórica da celebração da Independência da Bahia nada mais é do que a verdadeira Independência do Brasil. Acho que ela ganhou uma outra importância ao longo dos últimos anos, quando você reforça a importância do povo baiano, sobretudo o povo negro e povo indígena, na luta pela independência e na valorização desses participantes”, diz o gerente cultural da Fundação Gregório de Matos (FGM), George Vladimir.

Qual a história por trás dos caboclos?

Por terem sido feitas ambas por escultores especialistas em arte sacra, as esculturas são feitas em madeira do tipo cedro, coberta por gesso esculpido e com expressões neutras. Seus músculos são num tom de pele escuro e apenas um saiote foi esculpido em cada um como roupa, algo que curiosamente foi descoberto durante a primeira restauração, feita por José em 1997.

“Naquela época, eles pareciam monstros. Porque, durante mais de 100 anos, eles tiveram restaurações feitas por pessoas leigas que, em vez de manter as características originais, davam uma nova camada de tinta. Se eles sofreram 50 restauros, então tinham 50 camadas de tinta. Era tinta comum, a mesma pintura que pintava porta, janela e parede era a que pintavam as estátuas. Inclusive, foi naquela época que nós descobrimos que ambos tinham olhos de vidro. Tudo isso que era o short, era uma massa grossa de massa corrida com tinta”, relembra.

Há uma divergência em relação à autoria do Caboclo. Ele teria sido criado em 1826 por Manoel Ignácio da Costa ou por Bento Sabino dos Reis, ambos escultores sacros, e entregue apenas em 1828. O fato é que a carruagem como um todo foi montada a pedido da Sociedade Patriótica 2 de Julho, que, à época, organizava o cortejo para manter o costume iniciado em 1824, quando a população desfilou da Lapinha ao Terreiro de Jesus acompanhando um homem de ascendência indígena sobre uma carroça de canhões ornamentada com plantas, que fora apreendida do exército português.

“Já a Cabocla, não se tem dúvida: ela é da autoria de Domingos Pereira Baião, que é o mesmo que fez a imagem de Nossa Senhora da Conceição da Praia que sai na procissão. A Cabocla representa a indígena Catarina Paraguaçu. Porque, em 1848, o intendente de Salvador era português e ele era contra a saída do Caboclo nos desfiles. Os portugueses se sentiam humilhados ao ver a representação do herói esmagando com uma lança o dragão que os representava”, expressa.

Quando o carro da Cabocla ficou pronto, José conta que o major Umburanas, um dos organizadores do desfile, não aceitou que ela saísse sozinha e afirmou que o Caboclo só deixaria de sair com a sua morte. A partir de 1848, passaram a sair os dois.

*Com orientação da subeditora Monique Lôbo