Que caboclo é você? Conheça os diferentes usos da palavra

Com múltiplos significados, ele pode também ter sentido pejorativo

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  • Carolina Cerqueira

Publicado em 29 de junho de 2024 às 05:00

Os significados do termo caboclo foram incorporados ao longo do tempo e ainda hoje é cheio de polêmicas
Os significados do termo caboclo foram incorporados ao longo do tempo e ainda hoje é cheio de polêmicas Crédito: Quintino Andrade

"Caboclo” está inserido no pacote de palavras que você, provavelmente, aprendeu o significado na escola. Também estão nesta lista termos como “mulato” e “crioulo”. Todos chegaram à censura do politicamente correto, apesar de ainda serem usados em algumas localidades, até mesmo da Bahia, inclusive em alguns aldeamentos indígenas.

No Dicionário de Tupi Antigo, publicado por Eduardo de Almeida Navarro em 2013, “caboclo” significa “mestiço de índio e branco”, mas deriva do termo “kuriboka”, que significa “filho de pai indígena e mãe africana”. Eram as variações da palavra geral “mestiço”, sinônimo ainda de “mameluco” e “bastardo”.

Mas, antes das misturas acontecerem, “caboclo” já era usado, segundo o antropólogo José Augusto Sampaio, professor da Universidade Estadual da Bahia (Uneb) e presidente da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí).

“O termo começou a aparecer nos documentos históricos na altura das guerras holandesas, no século 17. A origem da palavra é ‘saído da mata’, no tupi, que era a língua mais falada no Brasil na época. Era usado nas cartas dos jesuítas para designar indígenas que estavam em aldeamentos missionários, sendo catequizados, enquanto os demais eram denominados apenas de índios ou indígenas”, explica o antropólogo.

Posteriormente, "caboclo” e “índio” passaram a ser contestados pelos povos indígenas ou povos originários, duas expressões hoje amplamente aceitas. “A palavra ‘caboclo’ foi muito utilizada em comunidades indígenas do sertão da Bahia e outros locais do Nordeste por pessoas não indígenas. Por vezes, o uso era depreciativo, para se referir a indígenas ‘degenerados’, que teriam se misturado e perdido a cultura e as raízes”, acrescenta José Augusto Sampaio.

Para a professora do Instituto de Letras da Ufba, Ivana Pereira Ivo, especialista em línguas indígenas, as mudanças de significados ao longo do tempo são inerentes às línguas naturais e são estudadas pela chamada sociolinguística. Trata-se de “uma mudança conceitual no tempo”.

No caso de “caboclo”, a palavra ainda está associada ao “preconceito linguístico”. “O termo é usado pejorativamente até hoje; ele é mantido na Paraíba e no Rio Grande do Norte, mas ainda em alguns locais aqui da Bahia. Você escuta que o caboclo é preguiçoso, que fulano é um caboclo maluco. Basicamente, é um termo usado para rotular, diminuir e desqualificar alguém de ascendência indígena”, diz a professora.

Segundo o filósofo e professor de História da Ufba, Milton Moura, o termo chegou a ser proibido na segunda metade do século 18, por gerar muitos conflitos. Mas nem tudo segue uma regra. “Em algumas nações indígena, como o povo Tuxá, eles se chamam de caboclos, de forma positiva e afetuosa. Também era um apelido que se dava até os anos 1960 para 1970, a pessoas que nasciam próximas ao 2 de julho, assim como se chamava João, Antônio e Pedro a quem nascia em junho”, destaca.

No Sul do país, é o termo “bugre”, mais usado, que é considerado pejorativo. Para o Cacique Babau, de 50 anos, que vive na Aldeia Serra do Padeiro, na Bahia, tudo depende da forma como se usa a palavra. “Tem um sentido espiritual, mas também o outro sentido. Entendemos o termo caboclo como um indígena que não mora mais na mata. E, realmente, muitos de nós não moram mais. E está tudo bem. Isso não significa que perdemos nossa cultura”, coloca.

Mas o cacique acrescenta que não vê razão na separação dos termos. “Um indígena que nasce de outro indígena, mesmo que na mistura com um branco ou com um preto, ainda assim é indígena”, explica. Mas nem mesmo o termo “indígena” é o ideal.

O melhor é designar cada povo de forma diferente, como Guarani, Yanomami e Kiriri, cada um com identidade cultural própria. No caso do Cacique Babau, o povo é Tupinambá. “Assim como ‘índio’, ‘indígena’ também é generalizante, gera uma invisibilização e não os reconhece enquanto povos e nações diversas”, coloca Ivana Pereira Ivo.

Caboclo na religião

Os caboclos enquanto entidades circulam, além de pelas ruas no 2 de Julho, também pelos terreiros de candomblé e umbanda. Neles, os espíritos chamados de caboclos são ancestrais indígenas.

Isso porque as religiões de matriz africana sempre cultuaram, em países da África, divindades específicas para cada território, os donos da terra. Com a diáspora, o território original ficou para trás e as novas terras eram dos indígenas.

Umbanda
Umbanda Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil

O Pai Rai, do Terreiro Cumoa de Umbanda, que fica em Salvador, explica que o caboclo é tratado como uma entidade espiritual que já esteve encarnada como indígena no plano em que vivemos.

Ele é incorporado em um ritual chamado de gira e é comum que se apresente com um nome que faça referência à sua ancestralidade, às tribos indígenas ou até mesmo às suas qualidades e habilidades.

Por mais que duas ou mais pessoas recebam um caboclo com o mesmo nome, cada um deles é diferente, assim como existem mais de uma Maria e um João no mundo, por exemplo.

“O caboclo é visto por nós como um grande espírito de luz que traz sabedoria, força, coragem, proteção, orientação e cura. Também costuma ser reverenciado pela forte conexão com a terra e a forte energia”, explica.

O caboclo pode ser do tipo pena, que seria o indígena, e do tipo de couro, que seria o boiadeiro, ligado à agricultura. “O primeiro é mais sisudo e o outro é brincalhão. Mas os dois têm poderes iguais e recebem as mesmas oferendas, como frutas e bebidas”, conclui.

O Pai Pretinho, do Terreiro Ilê Axé Iroko Sun, acrescenta nas oferendas o fumo e o mel. Ele conta que, no candomblé, o caboclo também tem vez, na maioria das casas. “É aquilo que dá sustentação à casa de candomblé. Quase todas as pessoas têm caboclo, mas algumas têm só orixá”, diz.

Pai Pretinho de Iroko,  babalorixá do Ilê Axé Iroko Sun, ressalta como os atabaques
Pai Pretinho de Iroko, babalorixá do Ilê Axé Iroko Sun, ressalta como os atabaques Crédito: Marina Silva/CORREIO

Assim como na umbanda, no candomblé existem os caboclos de pena e os boiadeiros, que também podem ser chamados de vaqueiros, tropeiros ou simplesmente sertanejos.

Especialista em estudos linguísticos, Yara Santiago, do Terreiro Ilé Àse Omo Alágbède Ògun Tòólá, diz que o caboclo mostra o caminho a ser seguido e é cultuado e respeitado por dominar a terra e acolher os orixás dos territórios africanos.

“Não existe uma competição entre orixá e caboclo, eles podem caminhar juntos e serem complementares porque dizem que os caboclos trazem mensagens dos orixás porque compreendem a língua portuguesa, enquanto muitos orixás, não”, diz Yara.

Outra diferença é que, enquanto o orixá come, descansa e é mais reservado, o caboclo chega cantando, bebendo e sambando. No dia 2 de Julho, ganha jerimum como oferenda de Pai Pretinho, mas a celebração grande, explica ele, acontece no dia do aniversário de cada caboclo, que marca a primeira vez da manifestação na pessoa.

Animado, portanto, além de ser reverenciado durante o desfile da independência, o caboclo ainda ganha festa nos terreiros o ano todo.