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Publicado em 29 de junho de 2024 às 11:00
“O povo vermelho resiste, o povo vermelho resiste/ Enquanto houver terra, enquanto houver mata/Enquanto houver espírito, enquanto houver sangue”. Esses poderosos versos foram entoados pela banda de heavy metal indígena Arandu Arakuaa, em 2015, e eles ilustram a luta dos povos indígenas no Brasil até o presente. Resistindo, guerreando e corporificando o sangue e o espírito de homens e mulheres indígenas, de outra maneira a Bahia também enaltece a sua imagem e a sua existência, reclamando a sua exaltação na famigerada festa do 2 de Julho por meio dos Caboclos e Caboclas.
Desde 1824, a celebração julina se distingue pelo envolvimento ativo e espontâneo da população. Autoridades e povo se misturam nos desfiles, onde também participam contingentes militares e representações simbólicas que comemoram a entrada das tropas vitoriosas em Salvador sobre a opressão colonial. Além disso, a presença dos povos indígenas, representados também pelo Caboclo e pela Cabocla, foi transformada em um elemento fundamental no cortejo, garantindo novas cores a um projeto de identidade nacional que é reinventado pela população em festa.
Diferentemente do Rio de Janeiro, a Bahia, junto com Pernambuco e Grão-Pará, resistiu à dominação portuguesa por meio de batalhas emblemáticas em que o povo foi protagonista. Tendo início em 18 de fevereiro de 1822, os conflitos se iniciaram na província a partir da insatisfação com a nomeação do militar lusitano Madeira de Melo como Governador das Armas, em detrimento do brigadeiro brasileiro Manoel Pedro. Tal episódio desencadeou numerosas hostilidades entre os partícipes tanto da causa recolonizadora quanto da emancipadora, culminando com a população baiana formando batalhões, grupos de guerrilha e de resistência local compostos por gente de toda sorte: homens e mulheres de diversos estratos sociais e etnias, soldados, escravizados, libertos e indígenas.
As batalhas foram inúmeras, ecoando desde a capital até além-mar. Lutando por suas vidas e imaginando um futuro com mais liberdade, o povo se rebelou contra a dominação lusa no território baiano organizando uma guerra de cerco pelo Recôncavo até a Ilha de Itaparica. Nessa estratégia, houve os famosos combates por terra, as trocas de tiros por dentre as matas e as fugas pelas ruas ladrilhadas. Além disso, bombardeios, embarcações lusas sendo incendiadas e surras de cansanção que queimavam a pele dos soldados inimigos também foram vistos. A improvisação de armas e o aprimoramento de técnicas de combate, neste sentido, garantiram com que os nossos antepassados se saíssem vitoriosos, e suas vozes fossem homenageadas até hoje.
Em 2 de julho de 1823, quando o brigadeiro português Madeira de Melo, após perceber a impossibilidade de manter o controle sobre a província, foi derrotado, o Exército Pacificador, comandado pelo coronel Joaquim José de Lima e Silva, entrou em Salvador, consolidando a vitória brasileira e a independência da Bahia. Séculos se passaram, e a independência baiana ainda é comemorada, uma vez que a emancipação da província foi essencial para impedir o desmembramento do território brasileiro e garantir a soberania nacional. Já a capacidade de mobilização, resistência e coragem cada vez mais estão sendo atribuídas não a um acordo político firmado no centro-sul do país, mas sim à nossa gente, ao povo que nas ruas, nas matas, às margens do Rio Paraguassu e nos mares da Ilha de Itaparica, lutando pela autodeterminação, conquistava os primeiros passos da liberdade.
De acordo com Edilece Couto e Milton Moura (2019), dentro desse contexto de luta pela independência, o culto aos nossos ancestrais se tornou ainda mais presente. Desde 1824 os cortejos foram vistos e ao longo do tempo os povos indígenas e africanos formaram um escopo de expressão cultural e espiritual, tendo os Caboclos e Caboclas os seus expoentes: figuras mestiças representando a fusão entre indígenas e colonos, símbolos de resistência e identidade.
Apesar de não se saber a data exata em que primeiro apareceram em carros alegóricos que remetem aos canhões de guerra, a historiografia já demonstra que ainda no século 19 eles foram integrados nas práticas religiosas afro-brasileiras, especialmente no Candomblé, onde são vistos como entidades espirituais poderosas. A mitologia dos caboclos sagrados, portanto, é decisiva na formação da imagem do indígena no imaginário popular da Bahia. No 2 de Julho, os Caboclos e Caboclas representam o povo heroico que lutou pela independência. De forma semelhante, nos terreiros de candomblé onde os caboclos são cultuados, canta-se sobre o orgulho e a identidade, refletindo o vínculo profundo entre a celebração cívica e a religiosidade popular.
O Caboclo, um homem indígena com cabelos longos, pele escura e postura altiva, é esculpido adornado com penas, armado com uma lança que apunhala uma serpente, representativa do domínio colonial. E a Cabocla, associada a indígena Catarina Paraguaçu hoje em dia também vem sendo rememorada a outras heroínas, como se de fato simbolizasse a diversidade das mulheres que estiveram presentes nas lutas: as marisqueiras, as soldadas, as libertas, as escravizadas, as indígenas, as pretas, todas elas que lutaram bravamente pela (própria) Independência.
Assim, a Festa do 2 de Julho não é apenas uma celebração cívica, mas também um evento de profundo significado religioso. O cortejo dos Caboclos e Caboclas, onde aparecem esculpidos em cima de carros alegóricos enfeitados com oferendas de frutas, bebidas e bilhetes, que para além de expressarem gratidão e esperança, também simbolizam a continuidade e adaptação das tradições culturais e espirituais na Bahia, está entrelaçado com a luta pela independência e a formação da identidade baiana e brasileira.
Além disso, a festa inclui diversas manifestações culturais e populares, tanto programadas quanto espontâneas. Durante o evento, as cerimônias cívicas e religiosas se entrelaçam, tornando-se um espaço privilegiado para campanhas cívicas e manifestações de diferentes grupos da sociedade civil, que utilizam a ocasião para expressar suas reivindicações e pautar as lutas do presente, envolvendo religião, política, cultura e identidade. Com isso, a tradição de contestação e participação popular faz do 2 de Julho uma data viva e dinâmica, onde o espírito de liberdade e resistência é constantemente renovado, até porque, como cantou Arandu Arakuaa: “Tem que contar pra criança aprender/Tem que falar a língua pra cultura não morrer”, a festa também vira um momento em que o povo baiano ensina e aprende, deixando viva a sua história de luta e resistência.
Marianna Teixeira Farias, mestranda em História Social pela UFBA e professora da rede pública e privada de ensino.