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Carolina Cerqueira
Publicado em 29 de junho de 2024 às 13:49
A festa tem ares de patriotismo, mas, ao invés de soldados, quem ocupa a posição de destaque são indígenas. Só por isso o 2 de Julho já teria seus encantos. Mas adicione na conta um quê de divindade que reveste, junto com as penas, as figuras em tamanho real feitas de madeira coberta por gesso e tinta de tom de pele escuro que desfilam na carroça.
Os caboclos, como são chamados, têm discípulos que querem chegar perto, tocar, entregar presentes e pedir saúde, emprego e casamento. Mas, afinal, por quê?
Para o ator, diretor teatral e gestor cultural Fernando Guerreiro, a explicação está no “misticismo” que o festejo exala. “Existe uma paixão e uma fé do povo baiano nessas entidades. Quando elas voltam da Lapinha, em Salvador, são ovacionadas. Eu sempre fui muito apaixonado por isso”, diz Guerreiro. Para ele, a ocasião supera as discussões quanto à denominação das figuras.
"Caboclo” está inserido no pacote de palavras que você, provavelmente, aprendeu o significado na escola. Também estão nesta lista termos como “mulato” e “crioulo”. Todos chegaram à censura do politicamente correto, apesar de ainda serem usados em algumas localidades, até mesmo da Bahia, inclusive em alguns aldeamentos indígenas.
Termo cheio de polêmicas e que carrega diversos significados incorporados ao longo do tempo, “caboclo” está nas raízes sociais, ramificado no acervo cultural da música, literatura e dramaturgia. Continua saltando aos olhos ao ser exibido pelas ruas no contexto do 2 de Julho, mas brilha durante o ano todo nos rituais de religiões de matriz africana.
Caboclo na música e literatura
O termo está enraizado em letras de canções, livros e até novelas. “Cabocla” foi exibida em 1979 pela TV Globo, tendo uma nova versão em 2004, inspirada no romance homônimo de Ribeiro Couto. Vanessa Giácomo foi a atriz responsável por dar vida à cabocla Zuca, que vive um romance com um jovem branco e rico que enfrenta resistências por conta das diferenças sociais.
O caboclo está em “Faroeste Caboclo”, de Legião Urbana; em “Caboclo Sonhador”, de Flávio José; em “Uma Casa de Caboclo”, de Chitãozinho e Xororó. Na letra de “Cavalo Preto”, de Almir Sater, o caboclo não tem família e leva uma vida nômade montado em seu cavalo.
Na letra de “Carta de Amor”, de Maria Bethânia, o caboclo está junto a termos de referência indígena, como Zumbi, Tupinambá, flechas, cocares e zarabatanas.
Também é colocado na canção lado a lado com Oxum, Ogum, Iansã, Jesus, Maria e José como símbolo de proteção. Segundo os dicionários mais antigos, o termo começou a ser usado para denominar povos indígenas, depois passou a significar a mestiçagem entre os povos e, mais adiante, foi apropriado por religiões de matriz africana.
Caboclo no dicionário
No Dicionário de Tupi Antigo, publicado por Eduardo de Almeida Navarro em 2013, “caboclo” significa “mestiço de índio e branco”, mas deriva do termo “kuriboka”, que significa “filho de pai indígena e mãe africana”. Eram as variações da palavra geral “mestiço”, sinônimo ainda de “mameluco” e “bastardo”.
Mas, antes das misturas acontecerem, “caboclo” já era usado, segundo o antropólogo José Augusto Sampaio, professor da Universidade Estadual da Bahia (Uneb) e presidente da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí).
“O termo começou a aparecer nos documentos históricos na altura das guerras holandesas, no século 17. A origem da palavra é ‘saído da mata’, no tupi, que era a língua mais falada no Brasil na época. Era usado nas cartas dos jesuítas para designar indígenas que estavam em aldeamentos missionários, sendo catequizados, enquanto os demais eram denominados apenas de índios ou indígenas”, explica o antropólogo.
Caboclo nas comunidades
Posteriormente, "caboclo” e “índio” passaram a ser contestados pelos povos indígenas ou povos originários, duas expressões hoje amplamente aceitas. “A palavra ‘caboclo’ foi muito utilizada em comunidades indígenas do sertão da Bahia e outros locais do Nordeste por pessoas não indígenas. Por vezes, o uso era depreciativo, para se referir a indígenas ‘degenerados’, que teriam se misturado e perdido a cultura e as raízes”, acrescenta José Augusto Sampaio.
Para a professora do Instituto de Letras da Ufba, Ivana Pereira Ivo, especialista em línguas indígenas, as mudanças de significados ao longo do tempo são inerentes às línguas naturais e são estudadas pela chamada sociolinguística. Trata-se de “uma mudança conceitual no tempo”.
No caso de “caboclo”, a palavra ainda está associada ao “preconceito linguístico”. “O termo é usado pejorativamente até hoje; ele é mantido na Paraíba e no Rio Grande do Norte, mas ainda em alguns locais aqui da Bahia. Você escuta que o caboclo é preguiçoso, que fulano é um caboclo maluco. Basicamente, é um termo usado para rotular, diminuir e desqualificar alguém de ascendência indígena”, diz a professora.
Segundo o filósofo e professor de História da Ufba, Milton Moura, o termo chegou a ser proibido na segunda metade do século 18, por gerar muitos conflitos. Mas nem tudo segue uma regra.
“Em algumas nações indígena, como o povo Tuxá, eles se chamam de caboclos, de forma positiva e afetuosa. Também era um apelido que se dava até os anos 1960 para 1970, a pessoas que nasciam próximas ao 2 de Julho, assim como se chamava João, Antônio e Pedro a quem nascia em junho”, destaca.
No Sul do país, é o termo “bugre”, mais usado, que é considerado pejorativo. Para o Cacique Babau, de 50 anos, que vive na Aldeia Serra do Padeiro, no Sul da Bahia, tudo depende da forma como se usa a palavra.
“Tem um sentido espiritual, mas também o outro sentido. Entendemos o termo caboclo como um indígena que não mora mais na mata. E, realmente, muitos de nós não moram mais. E está tudo bem. Isso não significa que perdemos nossa cultura”, coloca.
Mas o cacique acrescenta que não vê razão na separação dos termos. “Um indígena que nasce de outro indígena, mesmo que na mistura com um branco ou com um preto, ainda assim é indígena”, explica. Mas nem mesmo o termo “indígena” é o ideal.
O melhor é designar cada povo de forma diferente, como Guarani, Yanomami e Kiriri, cada um com identidade cultural própria. No caso do Cacique Babau, o povo é Tupinambá. “Assim como ‘índio’, ‘indígena’ também é generalizante, gera uma invisibilização e não os reconhece enquanto povos e nações diversas”, coloca Ivana Pereira Ivo.
Caboclo no 2 de Julho
Depois de tantas rodadas de significados, o “caboclo” chegou ao 2 de Julho como representante do povo brasileiro, nativo da terra. Primeiro, em tom de protesto e, só depois, celebração. Quem explica é o antropólogo José Augusto Sampaio.
O protesto era contra os portugueses, depois de soldados da terra terem lutado pela independência com a promessa de receberem liberdade ou pagamento e perceberem que foram enganados.
“A elite continuou elite e os pobres continuaram pobres. Em 1824, o pessoal saiu às ruas com a figura indígena representando o povo brasileiro, numa carroça, e desfilaram pela cidade atacando e depredando comércios de portugueses”, conta.
O episódio se repetiu em outros anos, até que o poder público resolveu juntar isso à festa oficial, que tinha teor de celebração. Chegou, então, a imagem da cabocla Catarina Paraguaçu, fruto da união entre povos indígenas e portugueses, representando união.
A partir do século 19, então, a figura dos caboclos passou a ser vista como símbolo de brasilidade e a ser explorada pela literatura romântica, como nos escritos de José de Alencar e Gonçalves Dias.
“Foi uma resposta à insatisfação e à crise identitária que pairava no Brasil. Foi um investimento político e ideológico na imagem do país. Você projeta no indígena viril, jovem, vigoroso, autônomo e puro a imagem de nacionalidade que se queria para um país emergente e independente”, explica o antropólogo e professor.
Para o Cacique Babau, os povos indígenas não enxergam o 2 de Julho como celebração. “Primeiro, não celebramos guerras, mesmo que tenhamos saído vitoriosos, porque também perdemos muitos de nós. Segundo, para nós é mais uma data para lembrar dos nossos direitos, que continuam sendo violados”, diz o cacique.
“Ainda somos muito invisibilizados no 2 de Julho. O povo negro aparece muito mais. Tem que aparecer, mas nós também temos. Muitas figuras negras têm nome e rosto, enquanto os indígenas são generalizados na figura do caboclo. Os nomes dos nossos heróis foram apagados da história”, acrescenta.
Caboclo na religião
Paralelamente, os caboclos enquanto entidades circulam, além de pelas ruas no 2 de Julho, também pelos terreiros de candomblé e umbanda. Neles, os espíritos chamados de caboclos são ancestrais indígenas.
Isso porque as religiões de matriz africana sempre cultuaram, em países da África, divindades específicas para cada território, os donos da terra. Com a diáspora, o território original ficou para trás e as novas terras eram dos indígenas.
O Pai Rai, do Terreiro Cumoa de Umbanda, que fica em Salvador, explica que o caboclo é tratado como uma entidade espiritual que já esteve encarnada como indígena no plano em que vivemos.
Ele é incorporado em um ritual chamado de gira e é comum que se apresente com um nome que faça referência à sua ancestralidade, às tribos indígenas ou até mesmo às suas qualidades e habilidades.
Por mais que duas ou mais pessoas recebam um caboclo com o mesmo nome, cada um deles é diferente, assim como existem mais de uma Maria e um João no mundo, por exemplo.
“O caboclo é visto por nós como um grande espírito de luz que traz sabedoria, força, coragem, proteção, orientação e cura. Também costuma ser reverenciado pela forte conexão com a terra e a forte energia”, explica.
O caboclo pode ser do tipo pena, que seria o indígena, e do tipo de couro, que seria o boiadeiro, ligado à agricultura. “O primeiro é mais sisudo e o outro é brincalhão. Mas os dois têm poderes iguais e recebem as mesmas oferendas, como frutas e bebidas”, conclui.
O Pai Pretinho, do Terreiro Ilê Axé Iroko Sun, acrescenta nas oferendas o fumo e o mel. Ele conta que, no candomblé, o caboclo também tem vez, na maioria das casas. “É aquilo que dá sustentação à casa de candomblé. Quase todas as pessoas têm caboclo, mas algumas têm só orixá”, diz.
Assim como na umbanda, no candomblé existem os caboclos de pena e os boiadeiros, que também podem ser chamados de vaqueiros, tropeiros ou simplesmente sertanejos.
Especialista em estudos linguísticos, Yara Santiago, do Terreiro Ilé Àse Omo Alágbède Ògun Tòólá, diz que o caboclo mostra o caminho a ser seguido e é cultuado e respeitado por dominar a terra e acolher os orixás dos territórios africanos.
“Não existe uma competição entre orixá e caboclo, eles podem caminhar juntos e serem complementares porque dizem que os caboclos trazem mensagens dos orixás porque compreendem a língua portuguesa, enquanto muitos orixás, não”, diz Yara.
Outra diferença é que, enquanto o orixá come, descansa e é mais reservado, o caboclo chega cantando, bebendo e sambando. No dia 2 de Julho, ganha jerimum como oferenda de Pai Pretinho, mas a celebração grande, explica ele, acontece no dia do aniversário de cada caboclo, que marca a primeira vez da manifestação na pessoa.
Animado, portanto, além de ser reverenciado durante o desfile da independência, o caboclo ainda ganha festa nos terreiros o ano todo.
O termo “caboclo” consta nos dois primeiros censos demográficos feitos no Brasil, coordenados pela Diretoria Geral de Estatística, antes da função ser assumida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que só foi criado em 1936. Os dois primeiros censos da história do Brasil foram feitos em 1872 e 1890.
No primeiro, as variáveis de raça eram “branca, preta, parda e cabocla”. No segundo, “branca, preta, mestiça e cabocla”. É possível notar que o termo fazia referência especificamente a povos indígenas e, não, a qualquer pardo ou mestiço (usado para a união entre pretos e brancos).
Em 1940, as opções foram somente “branca, preta e amarela”. Em 1950, houve o acréscimo da opção “parda” novamente e, em 1960, da opção “índia”, mas somente para os que viviam em aldeamentos. Só em 1991 o IBGE modifica o termo para “indígena” e retira a restrição anterior. Em 2010, foi incorporada a declaração de etnia e língua falada.
Segundo o IBGE, o número de caboclos registrados na Bahia nos dois primeiros censos (únicos que continham o termo), triplicou. Saiu, em 1872, de 49.882 para, em 1890, 150.342. De acordo com o censo mais recente, feito em 2022, a Bahia tem 229.443 pessoas indígenas, o que representa 1,62% da população total.