O que você ainda não sabe sobre o 2 de julho?

Uma história não contada:  10 fatos sobre a Independência do Brasil na Bahia que não te ensinaram na escola

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  • Priscila Natividade

Publicado em 30 de junho de 2024 às 11:00

Já se passaram mais de 200 anos que o exército português saiu derrotado das bandas do lado de cá, após uma guerra travada pelo povo baiano que libertou, na verdade, não só o que era antes província, mas um Brasil inteiro do domínio tirano da colônia. Ainda assim, é bem possível que muita gente não tenha sequer visto a história da Independência do Brasil na Bahia contada desta forma nas aulas de história. Ou quem sabe nem ouviu falar sobre isso na escola.

Um certo corneteiro pode ter tocado de forma corajosa ou equivocada o comando ‘cavalaria, avançar e degolar’ e assim ter definido a vitória na Batalha de Pirajá. Não foram só Joana Angélica e Maria Quitéria as mulheres que lutaram bravamente pela liberdade. Não cai no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas a verdade é que a riqueza e importância histórica do 2 de Julho é bem restrita – e porque não dizer, quase que invisível - no currículo, sobretudo, da educação básica. E quando aparece, há uma contradição nos fatos, como destaca a professora, coordenadora pedagógica da rede particular de ensino e mestre em História pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Danielle Leite:

“A forma como o povo participou desse processo contradiz as teorias amplamente difundidas na historiografia tradicional e no ensino básico, que apresentam a independência do Brasil como um processo pacífico, sem conflitos e sem a participação popular. No entanto, o mais curioso e interessante no processo de Independência na Bahia é exatamente a presença ativa e diversa da população”.

A independência do Brasil na Bahia ultrapassa o seu caráter provincial, assim como todas as outras que se desdobraram ao redor do país, como acrescenta a historiadora e professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Lina Aras.

“Este é um evento nacional, pois a independência não pode ser tomada como um ato único, da maneira que é tratada nos livros didáticos. O que não falta hoje, no entanto, é pesquisa nova, demonstrando a força dos baianos de todas as cores e localidades participando do processo e dando uma cara nova aos estudos”, reforça.

"O que não falta hoje, no entanto, é pesquisa nova, demonstrando a força dos baianos de todas as cores e localidades, participando do processo e dando uma cara nova aos estudos"

Lina Aras
historiadora e professora

Por que essa parte da história nem sempre é contada na escola? Segundo informações do Ministério da Educação (MEC), cabe aos estados a implementação e adequação dos seus referenciais curriculares à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), trazendo as aprendizagens propostas para a realidade local. A BNCC deve nortear os currículos dos sistemas e redes de ensino de todas as escolas públicas e privadas de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, em todo o Brasil.

No começo da semana, em visita à Cachoeira para as comemorações ao 2 de Julho, o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, disse que deve encaminhar ao ministério a inclusão da Independência do Brasil na Bahia no currículo escolar. “Determinei no ano passado que pudéssemos encaminhar ao governo federal, através do MEC, um material que orientasse os currículos escolares para mostrar ao Brasil a nossa história. Mas, não é a história da Bahia, não é a história de Cachoeira, é a história do Brasil. Encaminharei um documento ao ministro Camilo, orientando que o nosso currículo do MEC possa contar a história real da gente”.

Para a mestranda em História Social pela Ufba e professora da rede pública e privada de ensino, Marianna Farias, ainda que, em geral, a data cívica não seja ensinada no Brasil, na Bahia, há um incentivo crescente da presença histórica do movimento no currículo. Porém, existe um longo caminho para validar essa parte da história na educação. No ano passado, Marianna ministrou, no Colégio Estadual Thales de Azevedo, a disciplina ‘Bahia e seus Recantos’. O conteúdo integrava o itinerário formativo de humanidades da 3ª série do Ensino Médio.

“Por ser um itinerário, nem todas as escolas têm essa disciplina específica. É como se fosse uma eletiva, não compõe o currículo normal. Como o 2 de Julho não entra no Enem e nos demais vestibulares, muitas escolas acabam deixando esse assunto de lado por não considerar essencial para uma vaga na universidade. Mas, se a gente muda toda essa estrutura, o currículo muda também”, opina.

Representatividade

A professora e assessora técnica em Cultura e Patrimônio Histórico do município de Porto Seguro, Sônia Brito, reconhece avanços diante de um modelo de ensino ditado pela historiografia tradicional. “Vivenciei experiências desde um modelo pedagógico que sempre valorizou e privilegiou as análises dos eventos históricos ocorridos no Sudeste, que até então, não se falava do movimento baiano, nem do 2 de Julho, ou tratava o processo da Bahia como algo significativo. No entanto, a gente conseguiu avançar de um tempo para cá em uma historiografia baiana, nordestina que vai trazer o olhar do importante vetor de resistência portuguesa que a luta do povo baiano representa”.

Muitas escolas continuam utilizando livros de história contados por historiadores do Sudeste do país que ainda tem dificuldade em olhar a independência baiana com a importância que ela tem. “Quando conseguirmos romper o domínio dessas editoras e contar nossas histórias, vamos ter a possibilidade de trazer a Bahia para o centro dessa discussão”, acrescenta a professora, que defende que esse conteúdo esteja presente desde cedo na escola. “Eu diria que o 2 de Julho tem que ser aprendido nos primeiros anos de formação. As crianças deveriam ter oportunidade de ter esse conhecimento maior sobre esse e outros eventos da história baiana”.

"Quando conseguirmos romper o domínio dessas editoras e contar nossas histórias, vamos ter a possibilidade trazer a Bahia para o centro dessa discussão"

Sônia Brito
professora

Entendimento que passa também por uma formação crítica dos professores. É o que defende o historiador Ricardo Carvalho. “Existem vários temas que durante muito tempo ficaram de fora da sala de aula e dos livros. Se você tem um professor que é crítico, estudioso e que tem uma visão progressista da história, ele vai aprofundar o 2 de Julho e a riqueza histórica da Independência do Brasil na Bahia”. Ao lado, destacamos 10 fatos sobre a data que, provavelmente, você não deve ter aprendido na escola. Confira: 

1. Um movimento, de fato, popular

Pobres, pretos, escravizados, libertos, trabalhadores, indígenas e mulheres. O historiador Ricardo Carvalho afirma que o 2 de Julho é um caso único na história: “É o primeiro grande evento político, um caso singular de independência feita pelo povo. Não há registros de participação de nenhum aristocrata ou senhor de engenho que tenha prota- gonizado a luta, fato que torna a independência do Brasil na Bahia algo tão peculiar. Se não fosse a luta do povo baiano, não teríamos garantido a unidade nacional e formação que o território do Brasil tem hoje”. Também historiador e professor, Rafael Dantas concorda: “A participação popular, as pessoas das mais diversas camadas, interesses e contextos encabeçaram e estive- ram presentes nesse movimento que ajuda a entender os contornos que o Brasil iria seguir no século XIX”.

2. O povo na guerra

A historiadora e professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, Lina Aras, chama atenção para as condições enfrentadas pelas forças armadas, especialmente na entrada do Exército Pacificador na cidade de Salvador. “As forças precisaram do apoio de quem não estava na guerra, mas que viu aqueles homens e mulheres andando pelo Recôncavo, maltrapilhos e famintos. Assim, houve o envolvimento da sociedade em se mobilizar para ajudá-los com teto e alimentação. As caretas do mingau de Saubara [Leia mais nas páginas 14 e 15] são um ponto de partida para buscar outros lugares e pessoas que se comprometeram a dar sua ajuda para as forças armadas”.

3. Mulheres para além de Joana Angélica, Maria Quitéria e Maria Felipa

A forte participação feminina na luta se resume muitas vezes a essas três personagens, mas Lina Aras defende que as mulheres na independência devem ser estudadas para além de Joana Angélica, Maria Quitéria e Maria Felipa. “Foram muitas outras mulheres que não chegaram às páginas da história. Esse nosso panteão feminino tem outras mulheres anônimas que contribuíram para a vitória contra os portugueses”, comenta.

4. Independência do Brasil na Bahia

Quando aparece nos livros didáticos, dificilmente o 2 de Julho vem associado ao conteúdo sobre a Independência do Brasil, como ressalta a professora Marianna Farias: “A nossa independência, no geral, é muito curiosa. Existe, sim, o mito de que houve uma independência da Bahia, como se o estado tivesse sido separado do Brasil. Na verdade, o 2 de Julho é a independência do Brasil na Bahia e isso é bem importante destacar. A independência não se deu em 7 de setembro de 1822, ela não se consolidou ali”.

5. Sim, houve uma guerra bem violenta

A Independência do Brasil na Bahia não foi um movimento pacífico ou de batalhas pontuais. Marianna Farias explica que esse é outro ponto da história que merece ser desmistificado. “Houve batalhas sim, muita guerra e lutas sangrentas. Muitas pessoas acham que outras províncias não participaram, mas o Brasil todo estava assolado com conflitos e a Bahia teve um número de mortos e feridos altíssimo. Ou seja, a independência não foi apenas um acordo simbólico no Rio de Janeiro”. Por muitos anos a historiografia tradicional dominada pelo Sudeste e Sul do Brasil contou um rompimento sem luta, tornando invisível a participação do povo baiano, como acrescenta a professora e assessora técnica em Cultura e Patrimônio Histórico do Município de Porto Seguro, Sônia Brito. “O povo foi quem liderou, participou, quem lutou. Um povo que já vinha desde o final do século XVIII apresentando resistência ao domínio colonial português”.

6. Ilha de Itaparica no levante a favor da independência

Para o historiador Ricardo Carvalho, esse é mais um tema que precisa ser explorado na sala de aula. “Por mais que gente te- nha um crescente interesse, tanto acadêmico quanto educacional, ligado aos temas do 2 de Julho, existem ainda grandes lacunas. Uma delas é a participação do Recôncavo nesse processo de luta da Ilha de Itaparica, da região do canal de Itaparica e da contra costa da Baía de Todos os Santos. Regiões como Jaguaripe, Baiacu e Cações tiveram um papel importante na luta e nem sempre aparecem nos tratados históricos ou na sala de aula. É preciso que a gente tenha um foco mais intenso na busca de informações sobre a grande Batalha do Funil, que aconteceu ali onde é hoje a ponte do Funil, ligando Itaparica ao continente e aquela região do canal de Itaparica”.

7. Os saveristas no 2 de Julho

Ainda segundo Ricardo Carvalho, a participação naval no processo de independência sempre foi muito esquecida: “O líder João das Botas teve um papel significativo na organização daquilo que seria a nossa frota de luta e resistência, colocando canhões sobre saveiros, usando embarcações de pesca para tentar deter o avanço dos navios portugueses que cercavam a Ilha de Itaparica e tentavam encontrar outros caminhos para entrar na Baía de Todos os Santos e alcançar o vale do Paraguaçu para manter o Brasil colonizado. Então, esse trabalho dos saveristas, pescadores, canoeiros e mulheres naquela região foi bem significativo”.

8. Recôncavo na história

Marcos importantes que contam fragmentos dessa história em Cachoeira, São Félix, Maragogipe, Santo Amaro. A professora, coordenadora pedagógica da rede particular de ensino e mestre em História pela Uneb, Danielle Leite, reforça o papel fundamental dessa região na defesa e vitória contra os portugueses. “Essa região serviu como local de reorganização das tropas brasileiras após derrotas na capital, além de desempenhar um importante cerco militar que impossibilitava o reabastecimento das tropas portuguesas com alimentos vindos do sertão e do próprio Recôncavo”.

9. Soldados de várias regiões do Brasil também lutaram na Bahia

Além do povo baiano, soldados de diversas partes do país ajudaram a expulsar os portugueses. É também Danielle Leite quem explica esse fato: “Devido à importância econômica, política e geográfica da Bahia, perder essa região teria sido extremamente problemático para os planos de independência e unificação nacional. Na Bahia, reuniu-se um exército nacional que contou com a presença de soldados de várias regiões do Brasil, como Sergipe, Pernambuco, Rio de Janeiro e Paraíba”.

10. A festa popular que o 2 de Julho se tornou

Foi do Terreiro de Jesus, no Pelourinho, que saiu o primeiro desfile de 2 de Julho em Salvador, que ia até a Casa da Moeda. O povo se incorporou ao desfile, quando a figura do caboclo ocupou, pela primeira vez, seu lugar no cortejo, isso ainda em 1828. Hoje, a data cívica se tornou uma grande festa popular. Em nenhum outro lugar se comemora a independência com tanta intensidade como na Bahia: “A festa do 2 de Julho acontece há dois séculos e conta com uma grande participação popular. Diferente dos tradicionais desfiles de 7 de Setembro, onde o povo é um mero espectador, no desfile de 2 de Julho a população está inserida na programação oficial do desfile de forma orgânica, participando como protagonista”, completa Danielle Leite.

LIVROS QUE CONTAM (E RECONTAM) A HISTÓRIA DO 2 DE JULHO

. Nos Caminhos do Fogo Simbólico, de Jair Cardoso.

. 2 de Julho: a Festa é Historia, de Socorro Targino Martinez

. 2 de Julho: Independência da Bahia e do Brasil, de Álvaro Carvalho Jr. e Ubaldo Porto

. O jogo duro do dois de julho: o Partido Negro na independência da Bahia, de João José Reis

. A política dos homens de cor no tempo da independência, de Ubiratan Castro de Araújo

. Bahia, 2 de julho uma guerra pela independência do Brasil, organizado por Maria das Graças de Andrade Leal, Virgínia Queiroz Barreto e Avanete Pereira Sousa.

. Dois de Julho na escola, organizado por Lina Aras, Heloisa Monteiro e Sérgio Guerra Filho.

. Independência do Brasil na Bahia, de Luís Henrique Dias Tavares.

. Ação da Bahia na Obra da Independência Nacional, de Braz do Amaral.

. Algazarra nas ruas: comemorações da Independência na Bahia (1889-1923), de Wlamyra Ribeiro de Albuquerque.

MAIS HISTÓRIA DA BAHIA

De 2 a 31 de julho, o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) vai abrigar mais uma edição da exposição Personagens da Guerra pela Independência do Brasil. A visitação acontece das 14h às 17h, na sede do instituto, na Piedade. A mostra conta com quadros que retratam figuras marcantes do movimento como Maria Quitéria, João das Botas, General Labatut, Lord Cochrane, Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque (Barão de Pirajá) e Antonio de Souza Lima. Ainda no mês de julho, o IGBH também deve promover um seminário sobre a Independência do Brasil na Bahia. Já em novembro, está previsto um curso também sobre o tema.