Até na guerra, tinha vacina: combate à varíola não parou durante  lutas pela independência

Alguns anos antes, a Bahia tinha se tornado um centro exportador do imunizante antivariólico, a primeira vacina a ser inventada

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  • Thais Borges

Publicado em 30 de junho de 2024 às 11:00

O Primeiro Passo para a Independência, pintura de Antônio Parreiras
O Primeiro Passo para a Independência, pintura de Antônio Parreiras Crédito: Antônio Parreiras/Reprodução

Bolhas purulentas, dor, febre e uma inflamação severa que podia evoluir até a falência múltipla de órgãos em poucos dias. A cada epidemia, esses sintomas traziam uma velha conhecida no Brasil colonial: a varíola. Erradicada em todo o mundo desde 1980, a doença era tão preocupante na Bahia de idos de 1823 que, mesmo em meio ao cenário de guerra pela independência, as campanhas de vacinação não podiam dar trégua.

“Surpreendentemente, a vacinação antivariólica em Salvador não foi interrompida durante a guerra, pelo menos durante o conturbado ano de 1822”, diz a historiadora Christiane Maria de Souza, doutora em História das Ciências pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professora titular aposentada do Instituto Federal da Bahia (Ifba). O contexto da vacinação na Bahia oitocentista foi objeto de uma pesquisa conduzida por ela e pelo pesquisador Gilberto Hochman, publicada em um artigo científico em 2022.

Um dos documentos que permite afirmar isso foi uma nota publicada em um jornal local e assinada pelo encarregado da vacinação, o cirurgião-mor Francisco Rodrigues Nunes. No texto, Nunes informa que, em 1822, teriam sido vacinadas contra a varíola 1.356 pessoas na sala do Palácio do Governo, em Salvador.

Já no Recôncavo, onde também foram travadas duras batalhas contra os portugueses que aqui permaneciam, a realidade parece ter sido diferente. O mais provável é que a vacinação contra a varíola tenha sido interrompida lá, de acordo com uma solicitação do conselheiro Maia Bitencourt, em 1828, ao governo imperial - portanto, anos após a independência.

Naquela ocasião, o conselheiro pediu que as autoridades publicassem leis, instruções e outras disposições sobre a vacina. O objetivo disso seria agir em favor dos moradores daquela região, que não apenas sofriam com as epidemias de varíola como também vinham lidando com as sequelas deixadas pela doença.

O contexto de saúde nas cidades envolvidas nas lutas era muito diferente. Não existia nenhuma pandemia em curso naquele momento, como lembra a historiadora Maria Renilda Barreto, doutora em História das Ciências, mas outras doenças podiam ser consideradas endêmicas. Esse era o caso da febre amarela, que ocorria tanto nas ruas e portos de Salvador quanto no Recôncavo.

De forma geral, a dieta de quem aqui vivia era muito pobre em proteínas e vitaminas. Mesmo para quem estava internado em hospital, a alimentação não era muito diferente do resto da cidade. Segundo a historiadora, a dieta dos escravizados era ainda mais carente do que das pessoas livres. “Esse quadro de pobreza ficou pior durante as guerras de independência, paralisando o abastecimento da cidade pelos produtos vindos da Europa e do Recôncavo baiano”, acrescenta Maria Renilda, que é vice-presidente da Sociedade Brasileira de História da Ciência e professora visitante na Universidade Federal da Bahia (Ufba).

Primeira vacina

O caminho da vacina contra a varíola foi longo antes de chegar ao Brasil. Isso porque ela foi o primeiro imunizante já produzido artificialmente na história. Começou com o médico inglês Edward Jenner que, em 1796, percebeu que pessoas que ordenhavam vacas com varíola não desenvolviam a doença, se tivessem sido infectadas pela forma animal anteriormente.

Assim, ele retirou o pus da mão de uma pessoa que ordenhava vacas e havia contraído a varíola bovina e, na sequência, aplicou em uma criança de oito anos. Eventualmente, o menino, James Phipps, contraiu a varíola animal, mas só teve sintomas leves.

Algumas semanas mais tarde, o médico fez mais um experimento com a mesma criança: inseriu o líquido de varíola humana em James, que nunca contraiu a doença. A conclusão foi de que ele estava imunizado.

Foi graças à invenção de Jenner que, quase 200 anos depois, a varíola se tornaria a primeira doença erradicada por vacina no mundo. O certificado internacional de erradicação veio em 1980, pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Antes disso, por séculos, a varíola tinha sido considerada um mal do qual poucos conseguiam escapar. Na Bahia colonial, esteve presente desde os primeiros anos. Havia recomendação de quarentena para navios que aportavam no Brasil com infectados, mas não foi suficiente para conter o vírus. A propagação era fácil - tanto por gotículas e aerossóis quanto pelo contato com as lesões e com objetos dos infectados.

“A grande mortalidade de escravizados, nos vários ciclos epidêmicos, resultava na paralisação dos engenhos de açúcar e da produção agrícola em geral, desabastecimento, pobreza, fome e mortes”, explica a historiadora Christiane Maria de Souza.

Antes da vacina, em Portugal, assim como na maioria dos países, ainda usava-se a chamada ‘variolização’, segundo a historiadora Maria Renilda Barreto. Essa técnica foi inventada séculos antes pelos chineses e consistia em implantar pústulas de varíola em pessoas saudáveis, para que desenvolvessem uma forma branda da doença e ficassem protegidas a partir daí.

No mesmo ano em que Edward Jenner criava a vacina antivariólica, em 1796 foi organizado, em Lisboa, um hospital especial para a variolização.

Depois de três anos com essa experiência, as autoridades de saúde reconheceram que as crianças inoculadas estavam imunes ou tinham apenas erupções leves. "Essa prática de variolização se estendeu para todo o império português na América, África e Ásia mas ficou restrita aos militares, aos presos, aos órfãos. Estávamos longe da imunização da população", diz Maria Renilda.

Chegada

Ainda que tenha sido criada em 1796, a vacina antivariólica só chegou aqui quase 40 anos depois - e graças a iniciativas individuais, de acordo com a pesquisadora Christiane de Souza. O primeiro registro que se tem é de que, em 1804, Felisberto Caldeira Brant Pontes Oliveira e Horta pagou para que sete crianças escravizadas que ainda não tinham sido infectadas por varíola viajassem da Bahia até Lisboa, em Portugal. O objetivo da viagem era fazer com que elas fossem vacinadas lá.

“Uma destas crianças seria vacinada sete dias antes do retorno do navio à Bahia e as demais seriam inoculadas, braço a braço, no decorrer da viagem de volta, para garantir que a vacina não se deteriorasse e perdesse a eficácia”, acrescenta a pesquisadora.

Felisberto, que depois se tornaria o Marquês de Barbacena, não foi o único a patrocinar uma empreitada como essa. Como ele, outros comerciantes começaram a financiar viagens semelhantes porque o prejuízo vinha sendo grande. Uma vez que os escravizados adoeciam, a produção tinha que ser interrompida.

No entanto, quando as crianças retornaram, neste primeiro episódio, Felisberto e seu filho de cinco anos foram os primeiros a se vacinar em solo baiano. Os dois esperaram o navio ainda no cais. “Não havia restrição de idade, nem de gênero, nem de nada para tomar a vacina. Ela era muito recomendada”, explica.

Só que, ainda que a vacinação fosse estimulada, nem todo mundo queria. Primeiro porque ela deixava uma espécie de ranhura no braço e exigia uma revacinação como reforço. Nem todo mundo voltava para outra dose. Além disso, algumas pessoas diziam que tinham pegado outras doenças pela vacina.

Isso, de fato, poderia acontecer - não pelo vírus, mas porque o material não era descartável, como acontece com as agulhas de hoje."Aquela mesma lanceta que inoculava a vacina passava de braço a braço. Às vezes, nesse processo, eram passadas doenças transmissíveis, como a sífilis e outras", diz Christiane.

A partir daí, a vacina contra a varíola faz a Bahia ganhar um novo status no Brasil. De acordo com Christiane, desse período em diante, a província se tornou um centro produtor e distribuidor da vacina para outras capitanias. Entre 1804 e 1809, os imunizantes saíam daqui para o Rio de Janeiro, Maranhão, Pernambuco, São Paulo e Rio Grande do Norte, e até para Angola. Além disso, a Bahia também divulgava informações sobre como o imunizante deveria ser aplicado.

Insalubre

É em meio a este contexto que as guerras pela independência começam. Ao mesmo tempo que a província se tornava centro de vacinas, a sociedade da época tinha uma população tanto residente quanto flutuante muito diversa étnica e racialmente. Segundo a historiadora Maria Renilda Barreto, além dos baianos de Salvador, havia estrangeiros e baianos de outras cidades. A população variava entre 46 mil e 47 mil, enquanto o porto tinha capacidade para receber cerca de duas mil pessoas por dia.

"Os brancos eram minoria em relação aos não brancos - pardos, pretos, indígenas, cabra, mulato, para usar as definições coloristas da época", diz a pesquisadora. Cerca de 90% dos habitantes da população era pobre. De acordo com ela, mestiços e escravizados faziam trabalhos pesados, enquanto os que viviam de ganho nas ruas da cidade ficavam expostos a um ambiente insalubre. "A cidade era descrita como suja, mal iluminada, com lamas e pântanos, principalmente nas estações chuvosas".

Naquela época, ainda que a compreensão de saúde e doença fossem diferentes, o entendimento teórico pode ser considerado sofisticado para o período. A máxima era que, para se curar, era possível recorrer a cirurgias, a mudanças na alimentação ou à farmácia. Os problemas de saúde mais comuns eram as febres de todos os tipos, a tuberculose (considerada uma das mais fatais) e diarreia, que era a responsável pelo maior número de baixas entre os escravizados.

A eles, somam-se úlceras, feridas, contusões e fraturas. "Esse último conjunto de doenças cresceu muito durante as guerras de independência", afirma Maria Renilda. Para cada tipo de ferida, havia uma terapia diferente.

Dilacerações simples que fossem resultado de instrumentos cortantes recebiam esparadrapo ou ataduras. Em casos mais profundos, o cirurgião fazia suturas. Contusões recebiam panos untados com glicerina, cataplasma de linhaça e compressa com aguardente canforada.

Para amputações, segundo a historiadora, a primeira preocupação era estancar hemorragias com laqueação das artérias. "Em seguida, lutava-se para conter o tétano por intermédio das cauterizações com cáusticos. Nas feridas por armas de fogo o cirurgião tentava extrair o corpo estranho - grãos de chumbo, pedaços de ferro, pedra, vidro, etc - e daí, o tratamento era semelhante ao das demais feridas", completa.

Mudanças

Durante a guerra, há registros de que o então presidente do Conselho Interino de Governo da Província da Bahia, Miguel Calmon Du Pin e Almeida, alertou para o surgimento de uma emergência de malária e do que chamou de ‘outros males’ no Recôncavo. De acordo com a historiadora Christiane de Souza, não houve preocupação de especificar que males seriam esses.

Ainda assim, nos documentos, o conselheiro afirma que foi preciso implantar um hospital e um depósito de medicamentos na Vila da Cachoeira para oferecer tratamento ao grande número de doentes.

Já no ano seguinte, 1824, e até 1829, jornais de Salvador anunciavam escravizados fugidos cuja descrição física destacava cicatrizes da varíola. "Qualificações como ‘cara bexigosa’, ‘sinais de bexiga’ e ‘picado de bexigas’ aparecem como um traço identificador em quase todos os anúncios", explica. Apesar disso, não era possível afirmar com certeza se eles foram trazidos da África com essas marcas, se tinham sido infectados durante a viagem ao Brasil ou se ficaram doentes aqui.

Ainda segundo a historiadora, a Constituição de 1824 trouxe mudanças importantes que afetaram a vacinação. Essas novas regras concederam a Câmaras Municipais no Brasil uma ampla jurisdição sobre todos os assuntos de interesse comunitário - o que incluía o saneamento do espaço público, bem como a manutenção de instituições de caridade, de assistência médica e de vacinação.

Nos anos que seguiram à declaração da independência na Bahia, a vacinação contra a varíola continuou. Registros históricos mostram que, entre janeiro e dezembro de 1837, foram vacinadas 1.207 crianças livres, 1.088 crianças escravizadas, 303 adultos livres e 2.921 escravizados.

Naquele ano, chama atenção que o número de escravizados vacinados – 4.009 – foi maior do que o número de crianças e adultos livres também vacinados, que foi de 1.510. "O reduzido número de adultos livres vacinados sugere que a maioria estava submetida a algum tipo de autoridade ou coerção para se vacinar", completa Christiane.