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Maysa Polcri
Publicado em 2 de julho de 2024 às 15:24
Mesmo com a vista privilegiada da janela de casa, a aposentada Celeste Borba, de 74 anos, não deixa de colocar os pés na rua. O sobrado onde a baiana de Porto Seguro mora, no Barbalho, é ponto de encontro de parentes e amigos no 2 de Julho. Quando os caramanchões do Caboclo e da Cabocla se aproximam, porém, Celeste faz questão de chegar bem pertinho das figuras que representam a independência dos baianos. Os caboclos permanecem símbolo de resistência para quem celebra a data histórica.
A casa já estava cheia de visitantes quando a aposentada levou a bisneta de 3 anos para bem perto das carruagens. Tradição que Celeste repetiu com a filha e a neta, anos atrás. “O desfile faz a gente perceber o quanto esse dia é importante. Gostamos de sentir a energia da rua”, explicou Celsina Borba, 50, filha de Celeste. A idade e a dificuldade de locomoção não foram empecilhos para que muita gente mantivesse a tradição em mais um cortejo. Foi o caso de Durvalina Bonfim, 65.
Com o auxílio de uma muleta, ela esteve à frente do carro que levava a Cabocla durante todo o percurso. O gesto se repete há mais de 30 anos e é resultado de uma promessa feita em um momento de dificuldades. Quando estava sozinha, com dois filhos pequenos e sem emprego, Durvalina buscou os pés dos caboclos para pedir bênçãos. Para ela, a ida até o Campo Grande acompanhando o cortejo naquele dia, garantiu que ela conseguisse um trabalho no ano seguinte.
“Já era uma tradição da minha família participar do desfile. Então, quando eu mais precisava, decidi pedir para os caboclos”, disse Durvalina, que criou a família com o trabalho em uma panificadora. Até hoje, ela retribui a graça alcançada. “Os caboclos representam toda a força, coragem e fé”, afirmou.
Durvalina caminhou ao lado do grupo Os Guaranis que, desde a década de 60 cruzam a Baía de Todos-os-Santos para participar do cortejo. Vindos da Ilha de Itaparica, eles rememoram os bravos guerreiros que lutaram contra o domínio português nas batalhas que antecederam o 2 de julho de 1823. A primeira edição do desfile aconteceu no ano seguinte.
O caminho percorrido em mais um cortejo é uma homenagem aos baianos que resistiram e expulsaram de vez os europeus do território, mesmo após a declaração de independência feita por Dom Pedro I, em setembro de 1822. Foi contando essa história que Dominga Santos, 74, fez com que a filha, Rosilene Passos, 53, se encantasse com o desfile ainda criança.
Se quando era pequena Rosilene era levada pela mãe, dessa vez, é a matriarca que se apoia na filha para seguir os caboclos. De mãos dadas, elas comentavam e observavam mais um 2 de Julho em Salvador. “Os caboclos simbolizam a nossa liberdade. Eles lutaram pela libertação do povo negro, contra a escravidão e os portugueses, e merecem ser homenageados”, falou Dominga.
Muitos baianos aproveitam a data para levar as crianças para as ruas. O desfile, com suas fanfarras e músicas, ajuda a explicar a formação do estado brasileiro de maneira lúdica para os pequenos. Foram muitos os momentos que os carros dos caboclos foram saudados com “vivas”, fogos de artifício e pétalas de rosas. Outros grupos aproveitaram a ocasião para reivindicar aumento de salários. Caso de funcionários públicos do poder judiciário e da polícia.
Enquanto desfile subia a Ladeira do Boqueirão, com destino ao Santo Antônio Além do Carmo, uma multidão aproveitava para fazer selfies perto dos caboclos e tocar as figuras. Parte do público ficou pelo caminho e não seguiu até a Praça Municipal, no Pelourinho, onde os caramanchões repousaram até o início do ciclo da tarde do desfile.
Houve, no entanto, quem não saísse de perto. Caso do historiador Antônio Bittencourt, que vê a participação no desfile como mais uma batalha pela democracia. “A importância do desfile é manter a nossa identidade viva. Isso representa a luta contra a desigualdade e o racismo”, falou.
Mesmo encerrada a parte cívica pela manhã, os caboclos ainda receberam uma homenagem religiosa. Foi o toré, ritual ancestral repetido pelo segundo ano consecutivo. A cerimônia foi feita por indígenas e representantes de religiões de matriz africana. Mais uma prova de que a diversidade se une no dia em que até o sol é brasileiro.