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Prostitutas, mas não só: fotos inéditas mostram realidade do Centro

Em cartaz a partir desta terça (9), ensaio inédito de Flávio Damm retrata prostitutas e seus espaços de atuação em Salvador

  • Foto do(a) author(a) Laura Fernades
  • Laura Fernades

Publicado em 8 de janeiro de 2018 às 14:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Foto: Flávio Damm/Divulgação
Imagens de Flávio Damm revelam cotidiano de prostitutas que atuavam na Ladeira da Montanha, no bordel Meia-Três por Foto: Flávio Damm/Divulgação

Quando a cantora americana Janis Joplin (1943-1970) esteve em Salvador, na década de 1970, causou burburinho ao entrar em um famoso bordel da Ladeira da Montanha. “Dizem que ela foi no Meia-Três e cantou com as putas. O Meia-Três era cheio de histórias”, lembra a arquiteta Silvana Olivieri, 47 anos, curadora da exposição gratuita Mulher-Dama, que apresenta um ensaio inédito do fotógrafo gaúcho Flávio Damm sobre prostitutas e seus espaços de atuação em Salvador.

Em cartaz a partir desta terça (9), às 18h, no Museu da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), no Centro, Mulher-Dama reúne 42 fotografias registradas entre janeiro e fevereiro de 1966, além de 52 imagens em projeção que resgatam o Meia-Três: famoso bordel que funcionava em um dos casarões demolidos na Ladeira da Montanha, em 2015. As fotos, originalmente feitas para um livro que Flávio publicaria com o amigo Jorge Amado (1912-2001), foram arquivadas na Ditadura Militar.

“Com o AI-5, o Jorge, comunista confesso, preferiu deixar aquilo para mais adiante. Aí o tempo diluiu, passou, esse golpe que eles fizeram continuou por mais algum tempo. Eu fui para um lado, o Jorge para outro e não nos encontramos mais, não por nenhum motivo, mas o livro morreu ali”, conta Flávio Damm, 89 anos, consagrado fotojornalista que recentemente foi homenageado na 13ª edição do Paraty em Foco, um dos principais festivais de fotografia da América Latina.

Hoje, 50 anos depois, o público de Salvador terá a oportunidade de conhecer as imagens inéditas que contam um pouco mais sobre a história da cidade. Especificamente sobre o universo das prostitutas que atuavam no Meia-Três, “o mais famoso bordel de Salvador, talvez da Bahia inteira”, nas palavras de Flávio, que funcionava na Ladeira da Montanha, número 63, gerido pela matriarca China e conhecido como “castelo”.

“Jorge me propôs fazermos um livro sobre o dia-a-dia das residentes. Teria o título de Mulher-Dama. Fotografei com desenvoltura, respeitei suas intimidades e me reservei ao modo de viver das moças, a hora do penteado, da maquilagem, do encantamento com a melhor roupa para ir para o salão onde um cantor fazia as vezes de Carlos Gardel”, lembra o fotógrafo que não participará de sua primeira exposição individual em Salvador, por conta das limitações físicas.

Prostitutas, mas não só isso Além do Meia-Três, que fechou em meados da década de 70, pouco tempo depois da visita de Janis Joplin, Flávio também percorreu as ruas do bairro conhecido como Maciel. “As pessoas vão conhecer um bairro que desapareceu de Salvador. O que hoje se chama de Pelourinho, até os anos 90 era Maciel. Era um bairro que a polícia concentrava a prostituição, até os anos 90, quando acontece a famosa reforma do Pelourinho”, explica a arquiteta Silvana Olivieri.

Curadora da exposição, Silvana explica que os registros de Flávio retratam um universo que vai além do estigma da degradação. “Era um bairro com construções antigas, mas com muita vida. Banquinha de fruta e cotidiano como um bairro qualquer de Salvador. Prostitutas, mas não só isso. São faces que precisam ser reveladas, é uma oportunidade de ver esse bairro cheio de vida e se perguntar por que esse desapareceu”, provoca.

Durante uma pesquisa por espaços desaparecidos em Salvador foi que Silvana se deparou com o Meia-Três e as imagens de Flávio. “A perda me fez ir atrás dessas fotos do passado para tratar do presente”, destaca a curadora. “Seria um momento propício para discutir a questão da memória, para além da prostituição. Inclusive afetiva, não só do patrimônio arquitetônico, cultural. Como a gente atualiza esses espaços sem a destruição? Por que esses espaços com vitalidade e riqueza cotidiana única são marginalizados? Aquela área da Montanha é muito especial”, pontua.

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Silvana destaca que os castelos, como eram chamados os bordéis, cumpriam um papel importante na vida cultural e social da cidade. Afinal, eram espaços organizados como comunidades de mulheres, onde elas trabalhavam, moravam e criavam laços profundos de amizade. “O Meia-Três nunca foi fotografado. Isso ser guardado durante 50 anos é quase uma cápsula do tempo, quase um tesouro guardado. Fiquei emocionada quando vi. É uma oportunidade única”, reforça a curadora.

As cerca de 90 fotos que compõem a exposição foram pinçadas de um universo de 200 imagens. “Imagino que no arquivo dele deva existir mais e a ideia é, mais adiante, pesquisar em todo o acervo. Esse material que vai dar o que falar”, garante Silvana sobre o projeto que conta com o apoio financeiro do Fundo de Cultura do Estado da Bahia, através do Edital Setorial de Artes Visuais da Fundação Cultural.

Putativistas Na sessão de abertura da exposição que acontece quarta (10), às 18h30, será exibido o documentário francês Prostituição, de Jean-François Davy, gravado na década de 1970. Depois do filme que mostra as ocupações de igrejas francesas por prostitutas em busca dos seus direitos, movimento conhecido como a “revolução das putas”, acontecerá um bate-papo com as putativistas e feministas Monique Prada, de Porto Alegre, e Santuzza Alves, de Belo Horizonte.

Enfrentar o estigma em torno das prostitutas e desconstruir o preconceito que incide sobre elas é o principal objetivo do encontro que também terá sessões de cinema nos dias 17, 24 e 31 de janeiro, sempre seguidas de bate-papos. Nas próximas edições, participam convidadas como Fátima Medeiros e Mary Silva, diretoras da Associação de Prostitutas da Bahia – APROSBA (parceira do projeto), de Lourdes Barreto, de Belém (fundadora do Movimento Brasileiro de Prostitutas ao lado de Gabriela Leite), de Diana Soares, de Natal.

“A prostituição no centro de qualquer debate é, e sempre será, de extrema importância, já que somos um grupo de trabalhadoras e trabalhadores estigmatizados e marginalizados”, reforça a mineira Santuzza Alves, que participa do evento de abertura. “O direito de fala nos dá a oportunidade de desconstruir o olhar que a população tem em relação a prostituição, mostrando que somos mães, pais, filhas, filhos, netos e netas que estamos em busca de uma condição de vida melhor para a nossa família e em busca de direitos”, resume Santuzza.

Confira o breve bate-papo com as duas participantes da mesa de abertura

SANTUZZA ALVES, DE BELO HORIZONTE

1. A exposição Mulher-Dama traz a prostituição para o centro do debate. Em sua avaliação, qual é a importância disso? A prostituição no centro de qualquer debate é, e sempre será de extrema importância, já que somos um grupo de trabalhadoras e trabalhadores estigmatizados e marginalizados, o direito de fala nos dar a oportunidade de desconstruir o olhar que a população tem em relação a prostituição, mostrando que somos mães, pais, filhas, filhos, netos e netas que estamos em busca de uma condição de vida melhor para a nossa família e em busca de direitos.

2. Quais são os principais desafios enfrentados nesse universo? O estigma. Infelizmente o patriarcado faz questão em nos manter a margem da sociedade, mais uma vez ignorando que somos trabalhadores em busca de condições melhores de vida. As tentativas constantes de empurrar a prostituição para os suburbios, é o recado claro " você homem pode contratar o serviço de uma prostituta, mas você terá que frequentar os piores lugares para ter acesso a esse serviço."

3. O que pode nos contar sobre sua história? Minha história é como a história de milhares de mulheres, mulheres que sofreram aborto masculino e se viram sozinhas para criar seus filhos dispostas a não deixar faltar nada,o principal uma vida digna.

5. Por fim: qual é a sua idade? Minha idade? Ah, não se pergunta a idade de uma mulher.

MONIQUE PRADA, DE PORTO ALEGRE

1. A exposição Mulher-Dama traz a prostituição para o centro do debate. Em sua avaliação, qual é a importância disso?  É muito importante que possamos discutir a questão da gentrificação e higienização das cidades a partir do ponto de vista das trabalhadoras sexuais, que são as primeiras pessoas a sofrerem os seus efeitos. A exposição Mulher-Dama traz essa questão para o centro do debate sobre gentrificação por que ela já está lá, embora a sociedade prefira fingir que não existimos, que não precisamos existir. Ou que nossa existência é desimportante, embora as trabalhadoras sexuais estejam presentes fortemente em todas as esferas da sociedade. 

2. Quais são os principais desafios enfrentados nesse universo? Embora a prostituição não seja e nem nunca tenha sido crime no Brasil, tido em seu entorno é criminoso, o que nos obriga a viver na clandestinidade e de modo inseguro. O grande desafio é a legalização de nosso trabalho em todas as pontas, e isso é o que defende a Anistia internacional na defesa dos direitos das mulheres, e a Organização Mundial da Saúde, como estratégia para permitir a contenção do crescimento da nova epidemia de HIV no mundo (bom lembrar que a ilegalidade em muitos países transforma o preservativo em prova de prostituição). A luta contra o estigma neste contexto também tem grande importância. 

3. Como será sua participação no bate-papo do dia 10? O que pretende abordar? Abordaremos essas questões sobre como o estigma prejudica não só às Trabalhadoras sexuais mas prejudica a todas as mulheres. Todas as mulheres precisam ter medo de ser vistas como prostitutas, essa é a estratégia da sociedade patriarcal para manter as coisas como são. O estigma de puta colabora de modo definitivo para a manutenção do sistema.  

Serviço O quê: Exposição Mulher-Dama Abertura: 9 de janeiro de 2018, a partir das 18h Visitação: 10 de janeiro a 10 de março, de terça à sábado, das 10 às 18h Local: Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira – Muncab (Rua do Tesouro, s/n, Centro | 3022-6722) Entrada Gratuita