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Saulo Miguez
Publicado em 7 de agosto de 2017 às 04:20
- Atualizado há 2 anos
Na linha da vida, os dias nem sempre se emendam conforme o planejado. A história de Júlio Bomfim Santana de Jesus, 36 anos, é uma dessas colchas de retalho que ganharam cores e ritmos que variaram da obscuridade aos tons pastéis e da revolta à fé.>
Ex-líder do crime organizado em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador, onde ficou conhecido como Júnior do Gueto, ele refez sua história, tornou-se pastor, depois missionário e hoje é reverenciado na Igreja Evangélica Shalom Adonai como Irmão Júlio.>
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Em 2013, ainda enrolado com o tráfico, ele conversou com o CORREIO e contou como tentou financiar a carreira de músico com a venda de drogas. Agora, em nova entrevista, revela o que ganhou ao escolher mudar o rumo de sua história.>
O início Filho do já falecido Júlio Torrentino de Jesus e da costureira Eunice Souza Santana, o missionário que hoje é requisitado por diversas igrejas evangélicas para cantar e realizar pregações, desenrolou um vasto novelo para bordar sobre o temido apelido Júnior do Gueto a respeitosa alcunha de Irmão Júlio.>
Casado e pai de quatro filhos, ele é direto ao falar sobre que imagem quer deixar para os herdeiros. “Quero que conheçam o pai de hoje. A pessoa que eles podem chegar na escola e ter orgulho de dizer. Antes eu era chamado de monstro. Hoje sou o Irmão”, diz.>
Da infância pobre em Salvador, ele guarda, além das dificuldades vivenciadas no bairro Arenoso, a luta dos pais para não deixar faltar comida. “Quando a gente não tinha nada para comer, saía com meu pai para pescar naquele rio da Paralela. Foi uma infância muito difícil, mas meu pai batalhava para colocar o pão”.>
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Talentoso com a bola nos pés, Júlio chegou a passar em peneiras para jogar nas categorias de base do Vasco da Gama e do América, ambos do Rio. O instinto protetor de dona Eunice, no entanto, manteve o aspirante a craque perto de casa e longe dos gramados.>
Entre um baba e outro, Júlio foi descobrindo a aptidão para a música. Naquela ocasião, o rap e o pagode dividiam a sua atenção. Ele relembra que a canção Inaraí, do grupo Katinguelê, o despertou para o seu verdadeiro sonho: cantar. “Eu ficava deitado batendo nas paredes e minha mãe perguntava se eu estava maluco. Ali, Deus estava querendo me mostrar que eu tinha um dom”, acredita.>
Aos 16, fez a primeira composição e mostrou aos amigos. A aprovação dos colegas o incentivou a correr atrás do sonho. “Cheguei a cantar em alguns programas de televisão, mas as coisas não deram muito certo e as portas foram se fechando.”>
Mudança de vida A mudança para Simões Filho, no final dos anos 1990, marcou também o encontro de Júlio com o capítulo mais sombrio da sua história. Na periferia da cidade, a linha da vida de Júlio se cruzou com o crime e a paz do menino que pescava à beira do rio pouco a pouco foi substituída pela sede de poder.>
“Um traficante patrocinou meu CD e eu cheguei a me apresentar com vários artistas. Mas não tinha paz para cantar, porque sabia que estava me envolvendo no mundo errado”, cita.>
Cantando raps de apologia ao crime e já descrente de que alguém fosse lhe dar uma nova oportunidade, o já rebatizado Júnior do Gueto decidiu mergulhar de cabeça no tráfico para ganhar dinheiro e pagar as rádios para tocarem sua música. “Quando entrei nesse negócio, terminei perdendo o foco da música”, conta.>
Robin Hood da favela Apesar da vida delituosa, Júnior do Gueto preservou traços dos valores bordados por dona Eunice lá na infância pobre no Arenoso. Assim, colecionou mais um apelido: Robin Hood da Baixa da Fontinha.>
“O dinheiro era amaldiçoado, mas eu ajudava muita gente. Às vezes, vinha dos assaltos e distribuía dinheiro. Eu doava cesta básica, botijão de gás. Era uma pessoa má, mas com um coração bom”, conta. Esse ‘bom coração’, diz, foi o que o manteve vivo até hoje. >
“Meus colegas morreram todos, porque não tinham coração, queriam bater nos outros, matar”, conta Júlio, que chegava a acertar com as vítimas de assaltos a devolução.>
Livramento A vida de crimes o colocou por diversas vezes em sérios apuros. Em uma dessas situações, ele lembra que viu a morte de perto. Durante uma ação policial, conta que os PMs chegaram até a casa dele, invadiram a residência e o levaram para um ‘acerto de contas’.>
“Eu havia sonhado que seria preso. Confesso que achei que aquela seria a minha última oportunidade, que não tinha mais jeito. O policial botou a arma na minha cabeça.”>
Àquela altura, uma multidão se aglomerava e clamava pela vida dele. Fazendo valer a máxima de que a voz do povo é a voz de Deus, ele diz que os policiais pouparam o rapaz de “ir embora mais cedo”.>
Renascimento No bordado da vida de Júlio, o dia 18 de julho de 2013 é um ponto de cruz. Naquela data, seu Júlio Torrentino faleceu, e o filho, que tanto o amava, não pôde sequer se despedir do ídolo por medo de ser perseguido pela polícia no velório. Naquela data, uma ligação de dona Eunice motivou Júlio a, finalmente, voltar a andar na linha. “Minha mãe ligou na hora que meu pai morreu e disse: ‘meu filho, se você continuar nessa vida, vai morrer, e, se você morrer, eu morro também’. Aquilo rasgou meu coração e eu pensei: ‘não posso matar minha mãe de desgosto’”, recorda.>
Em uma igreja evangélica em Alagoinhas, Nordeste do estado, deu o primeiro passo para deixar a criminalidade: reconheceu que precisava mudar. >
Liberdade e paz Arrepender-se somente não seria suficiente para Júlio quitar seus débitos com a sociedade e exorcizar os demônios que tanto o atormentavam. Júnior do Gueto vivia o paradoxo de estar preso longe da prisão e viu a necessidade de se entregar à polícia para ter de volta a paz.>
“Quando eu ia dormir, chorava com saudades da liberdade que tinha. Queria poder ver meus filhos. Queria ter minha família de volta”, relata. Ao seguir para o presídio, superou ainda o medo de morrer dentro da cela por conta de uma guerra entre facções. >
Hoje, após ter deixado a penitenciária Lemos Brito, onde chegou a passar 11 meses recluso, segue recosturando sua história, acertando as contas com a Justiça - atualmente, não há mandados de prisão em aberto contra ele -, e se mantém sólido no propósito de cantar. “Hoje posso não ter riqueza, mas tenho paz. Sei que estou salvo.”>