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Biblioteca Central reforça descaso com a pesquisa e a memória

Local está sujo, sem ar-condicionado e jornais; pesquisador fez carta ao governador

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 28 de fevereiro de 2018 às 06:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

Primeira biblioteca da América Latina; dona de uma história de 207 anos; detentora de um acervo de mais de 600 mil arquivos – mais de 150 mil livros. Sobrevivente a incêndios, bombardeios, roubos e mudanças de sede. A Biblioteca Central do Estado, antes Biblioteca Pública do Estado, é tudo isso. Agora, ela enfrenta outro momento sombrio: sem grandes investimentos, falta limpeza, climatização e até jornais diários.

A situação não é nova, mas voltou à tona na semana passada, depois que o jornalista Claudio Leal divulgou, nas redes sociais, uma carta pública endereçada ao governador Rui Costa. No texto, Claudio denuncia as condições da biblioteca – que vão desde o que chama de ‘desertificação’ do setor de periódicos, onde ficam os jornais diários, até as más condições de limpeza.  

“São quase dois anos de incúria, de estúpida austeridade e de grosseria contra leitores e pesquisadores. Um ato de desprezo à memória histórica da Bahia”, diz, na carta. Segundo ele, os banheiros têm cheiro de urina e os mictórios são ‘podres’, mas refletem um descaso que vêm atravessando mandatos e partidos políticos.  Os banheiros sujos foram citados na carta do jornalista (Foto: Marina Silva/CORREIO) “Não há motivo para vanglória: isto não é um feito de sua gestão. O desrespeito à higiene dos usuários atravessa décadas e não exclui governantes de esquerda ou direita”, pontua o jornalista, que cita os 20 dias em que a biblioteca teve que fechar, em 2016. Na época, o CORREIO denunciou cortes na segurança e na limpeza.

Sem jornal No caso dos periódicos, os cortes também remetem a 2016. Desde aquele ano, a biblioteca, dona de um dos maiores acervos de periódicos e publicações raras do estado, não recebe jornais diários. As justificativas não oficiais – de funcionários e frequentadores – incluem falta de dinheiro e até burocracia. No fim, o resultado é o mesmo: a biblioteca não consegue mais garantir as assinaturas.  Os últimos exemplares de jornais são de 2016 (Foto: Marina Silva/CORREIO) Em agosto de 2016, chegaram ao fim a assinatura da Tribuna da Bahia e, pouco antes, em junho, a do jornal A Tarde. As edições do CORREIO duraram um pouco mais – devido a uma doação, é possível encontrar tudo que foi publicado até dezembro. Jornais nacionais também não há.

Baiano, o jornalista fazia pesquisa para o mestrado em história do cinema baiano na Universidade de São Paulo (USP) quando se deparou com os problemas. Percebeu que algo estava ainda mais errado quando notou a queda no número de frequentadores. O setor de consulta aos periódicos, antes um dos mais procurados, estava vazio. 

Procurada, a Fundação Pedro Calmon (FPC), ligada ao governo do estado, não informou a quantidade de visitas lá, somente as feitas à Sala de Consulta do Arquivo Público - que caíram de 5.563 em 2007 para 3.190 em 2017. A Fundação também não se manifestou sobre os problemas no local.

Desde 2016 frequentando a biblioteca para pesquisa sobre anos de 1950 e 1960, Claudio já vinha incomodado com a infraestrutura do local. Em meio ao calor, não conseguia passar muito tempo pesquisando. Se tinha quatro horas disponíveis para pesquisar lá dentro, não suportava mais do que duas, de tão quente.

“Quando encontrei a biblioteca nesse estado de afastamento de leitores, já fiquei um pouco surpreso. E quando comecei a experiência como pesquisador, fui entendendo o que estava acontecendo. As pessoas precisam entender que é muito grave uma biblioteca pública não receber continuamente jornais diários. São lacunas que vão ser enfrentadas pelos historiadores lá na frente”, explica Cláudio, em entrevista ao CORREIO. 

Desde os 14 anos, o jornalista frequenta a biblioteca. Durante sua pesquisa, descobriu que usuários do espaço e funcionários chegavam a fazer doações para evitar a lacuna. Ele defende que, se a biblioteca não está arquivando ‘o presente’, não é possível dizer que ela tem cumprido seu papel. “E não adianta dizer que o período está digitalizado, porque já há perdas de arquivo de fotografias e textos no universo digital, então a biblioteca pública não pode deixar de arquivar o impresso”.

Por isso, decidiu escrever a carta e endereçá-la ao governador Rui Costa, ao invés dos representantes dos órgãos diretamente responsáveis pela gestão da Biblioteca Central.  “Não adianta escrever e protestar contra ocupantes de cargos de segundo escalão que nada podem fazer contra senhores de autoridade fiscal”. 

Até barata Segundo a carta de Cláudio, as publicações foram cortadas devido a ‘estranhas burocracias’, além de um ‘desinteresse oficial de solucionar esse impasse’. Na segunda-feira (26), dia em que a reportagem do CORREIO esteve na biblioteca para uma pesquisa de jornais, a negativa veio com outra explicação – dessa vez, relativa à economia. “Aí... Está vendo a crise no país, né?”, justificou um dos funcionários.

O mestrando em História pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) Sivaldo dos Reis conhece bem a realidade da biblioteca. No dia em que encontrou o CORREIO, ele pesquisava no Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb), na Baixa de Quintas. No entanto, durante os últimos dois anos, foi na Biblioteca Central onde esteve mais vezes para buscar informações para a dissertação sobre raça e cidadania no período da Primeira República.  Sivaldo pesquisa na Biblioteca Central e no Apeb (Foto: Thais Borges/CORREIO) O foco de seu trabalho é o advogado africano Maxwell Assunção, que nasceu em Lagos (Nigéria), mas viveu por 35 anos em Salvador. Neste período, o advogado escreveu para vários jornais denunciando casos de racismo na cidade. E foi assim que Sivaldo se tornou presença constante no setor de periódicos da Biblioteca Central – justamente pesquisando os jornais.

Foi numa dessas que, em um dado momento de 2017, Sivaldo notou algo estranho em seu pé. Ao olhar para baixo, constatou a presença de um ser que faria muita gente sair correndo: uma barata, que surgira ali, em meio à seção de periódicos. “Isso é algo muito sério. Cheguei a falar com um funcionário, mas ele até brincou, dizendo que ali tinha ‘rato, barata, até caranguejo’, lembra, sem tirar a responsabilidade dos próprios pesquisadores. Sivaldo conta que já presenciou, inúmeras vezes, gente comendo nos aposentos da biblioteca – e ainda reclamando das advertências dos servidores. 

Ele diz que, de uma forma geral, a infraestrutura da biblioteca ‘é um problema’. Sem ar-condicionado e ventiladores, ele afirma, ainda, que o atendimento é precário. No Apeb, Sivaldo elogiou, mais de uma vez, a presteza dos funcionários. Na Biblioteca Central, até o barulho de conversas dos servidores e terceirizados é uma dificuldade. Desde 2015, o historiador acredita que o movimento tenha caído, mas lamenta a diminuição dos recursos destinados ao incentivo à pesquisa no Brasil de forma geral.

Para todos  A diretora do Instituto de Ciência da Informação (ICI) da Ufba, Hildenise Novo, também critica a situação da biblioteca. É lá que os estudantes da graduação em Biblioteconomia da Ufba, um dos cursos lotados no ICI, fazem estágio obrigatório. E, para a professora Hildenise, o contexto atual é ‘absurdo’. 

“A gente sabe que, efetivamente, as políticas públicas na área da cultura e da educação vêm sendo postas de lado pelos nossos governantes e a gente não pode deixar que isso aconteça. Isso é uma coisa que revolta a comunidade, revolta os bibliotecários. Acho que deveria ser motivo de protesto”, afirma.

Atualmente, ela orienta um trabalho de mestrado em que o estudante chegou a desistir de continuar a pesquisa na biblioteca - justamente devido à falta de jornais atuais. Sem saída, ele acabou recorrendo ao acervo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB). 

“O jornal é um veículo de informação que se atualiza diariamente. Nem todas as pessoas têm acesso à internet nesse país ainda. A internet é importante, mas, por si só, não basta. É importante olhar sobre o objeto físico e pela questão de dar acesso a todo e qualquer tipo de público”.

A professora da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) da Ufba, Maria Hilda Baqueiro, defende que projetos de preservação de memória – como o acervo de periódicos da biblioteca – sejam assumidos pela sociedade, não apenas por governantes. “Não pode simplesmente responsabilizar o estado por tudo, quando é muito mais simples fazer de outras formas, com a participação de empresas, de particulares...”. 

Preservação Desde o caso do fechamento da biblioteca em 2016, o número de pesquisadores que recorre ao IGHB aumentou. Ao CORREIO, o presidente da entidade, Eduardo Morais de Castro, estimulou que o crescimento tenha sido de 15% de lá para cá. Além de oferecer jornais diários atualizados para consulta, o IGHB conta com jornais desde o século XIX e um acervo de 45 mil publicações.

Por dia, recebem, em média, dez pesquisadores. Diferentemente da Biblioteca Central, cujo número de usuários tem caído, ele diz que não notou nenhuma queda na bibliotexa da unidade. “Atribuo muito dessa diminuição à internet, já que você tem o mundo no celular. Só que, na nossa, temos um público muito específico, que estuda geografia, história, antropologia, e tem um acolhimento e preservação dos livros de uma maneira diferenciada”. 

Nas salas de consulta, os ambientes são climatizados e há desumidificadores de ar para preservação do acervo. “Essa é uma memória que a gente tem. Temos que ter esse patrimônio, porque temos um tesouro na mão”.

Pesquisadores comentam os desafios do trabalho  Quem atua como pesquisador na Bahia não tem uma vida fácil – especialmente se depende de documentos históricos. É o caso das professoras Juliana Barreto Farias, 40 anos, e Idalina Freitas, 37, do curso de História da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Só para o projeto de pesquisa mais recente – sobre engenhos em São Francisco do Conde, na Região Metropolitana de Salvador (RMS) -, passaram por arquivos municipais de várias cidades próximas, como Cachoeira e Santo Amaro. 

Encontraram espaços fechados ou arquivos inexistentes. No dia em que encontraram o CORREIO, na terça-feira (27), elas davam início à pesquisa no Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb), na Baixa de Quintas. Planejavam passar o dia ali com a aluna Tatiana Santana, 30, que faz parte do projeto de iniciação científica. Os próximos seis meses devem ser de visitas ao Apeb.  Tatiana, Juliana e Idalina recorreram ao Apeb depois de não conseguir documentos em arquivos municipais (Foto: Thais Borges/CORREIO) “Aqui tem questões estruturais,  porque é um prédio muito antigo. Mesmo assim, é tudo muito tranquilo e prático. A gente chega e os funcionários já vêm ajudar”, diz Juliana. Sem ar-condicionado, elas contam que tiveram experiências em outros arquivos pelo Brasil que estão da mesma forma – à exceção do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, que é climatizado.

Elas reforçam a importância desses espaços de pesquisa – não apenas para quem trabalha com História, mas para a sociedade de forma geral. “A gente pode, assim, recompor a trajetória de sujeitos, recuperar a história e podem inclusive surgir outros temas de pesquisa”, completa Idalina. 

Para ficar mais perto do Apeb, o mestre em História Alexandre Gonçalves saiu de Ipirá, no Centro-Norte do estado, onde leciona no curso de Pedagogia em uma universidade particular. Assim, ele planeja desenvolver a pesquisa para seu projeto do doutorado em História. Na terça-feira (27), ele tinha retornado ao espaço, que não visitava desde 2015, para estudar sobre Capitanias Hereditárias.

“Se fosse possível melhorar, ótimo, mas a gente sabe que o investimento do poder público em todas as esferas não é ideal, que seria de encontrar online. Aqui, na Bahia, a referência é o Apeb por arquivo, organização... Mas o futuro é digitalizar, não apenas ter o arquivo”, aponta. 

Mestrando em História pela Ufba, o pesquisador Marlos Cândido, 23, também passou boa parte dos dias do último ano pesquisando no Apeb. O objetivo era encontrar o máximo possível de informações sobre uma invasão francesa em Porto Seguro, no século XVIII. Como a cidade não tem arquivo municipal próprio, a maioria dos – poucos – documentos disponíveis veio para o Apeb ou para o Arquivo Nacional.

“Conheço o Arquivo Nacional e a Biblioteca Nacional e é incomparável o que eles podem oferecer. O Apeb está muito precarizado, as máquinas (para microfilmes) estão ultrapassadas, mas o pessoal aqui é muito disposto a ajudar. Aqui, na sala de microfilme, é climatizado, mas, na sala de consulta, onde passo 75% do tempo, não”.

Marlos pretende finalizar a pesquisa no Apeb ainda esta semana. Depois, vai se concentrar na escrita da dissertação do mestrado, que defenderá em 2019. Para ele, o trabalho de investigação é quase como de ‘formiguinha’. Ele ressalta a variedade de documentos para pesquisa no local. “O Apeb é fantástico. Se não fosse o Apeb em nossas vidas, não existiria pesquisa na Bahia. É o melhor lugar para pesquisar o período colonial”.

Leia a íntegra da carta aberta de Cláudio Leal:

"Caro governador Rui Costa, Trago-lhe notícias da decadência da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, criada em 1811 e instalada em 1970 nos Barris, centro de Salvador, sob a responsabilidade do governo do Estado. Sem querer contrariar a irrelevância da cultura em seu governo, informo-lhe que a velha biblioteca continua a não receber nenhuma assinatura de jornais locais e nacionais. A seção de consulta a periódicos, antes repleta de frequentadores, sofre um processo de desertificação. Visitantes retornam para a rua ao verificar que não há jornais do dia. São quase dois anos de incúria, de estúpida austeridade e de grosseria contra leitores e pesquisadores. Um ato de desprezo à memória histórica da Bahia. De acordo com os funcionários, desde junho de 2016 a remessa de publicações foi cortada em razão de estranhas burocracias, inéditas em quase dois séculos de serviços públicos, agora humilhados pelo desinteresse oficial de solucionar esse impasse. Conforme apurei, usuários e funcionários chegam a doar seus jornais para corrigir parte da lacuna do acervo da biblioteca. Esta história é comovente, mas deveria lhe indignar tanto quanto a mim, porque o dinheiro para a manutenção é mínimo. Uma assinatura do jornal “A Tarde” custa R$ 65 por mês (felizmente, a maior parte do acervo está digitalizada). O “Correio” custa uma pechincha: pode sair R$39/mês. Como se vê, nada que ofenda o erário. Na Biblioteca dos Barris, realizei pesquisas em 2016 e 2017 e posso descrever o zelo de funcionários jogados em ambientes sem ar condicionado, outro atentado contra o acervo. O calor reduzia a capacidade de resistência, o tempo de pesquisa se reduzia. E cabe uma pequena atualização: a sala de consultas a periódicos se encontra outra vez sem ar condicionado. Quebrou. Em 22 de fevereiro de 2018, crescia a esperança de um conserto. Os banheiros da biblioteca são sujos, fedem a urina e dezenas de vasos seguem interditados. Os mictórios são podres. Não há motivo para vanglória: isto não é um feito de sua gestão. O desrespeito à higiene dos usuários atravessa décadas e não exclui governantes de esquerda ou direita. O PT, defensor das minorias, deveria proteger a saúde de raros leitores. Há pouco tempo, houve cortes indecentes na limpeza e na segurança, mesquinharia revertida dentro da lentidão habitual de tudo que se refere à preservação histórica no Brasil. Em 2016, a biblioteca fechou por 20 dias. Os vigilantes não eram pagos, como denunciou a imprensa. Antes do fim, vamos rapidamente ao subsolo. A Sala Walter da Silveira, que foi uma referência da cinefilia baiana, dispõe de um excelente programador, mas recebe recursos pífios para realizar mostras e retrospectivas de filmes. Seja mais generoso com a sala que leva o nome de um dos maiores críticos do Brasil. Apesar do meu desencanto, espero que o senhor corrija o descaso de seu governo com a Biblioteca Pública. Esta carta, naturalmente, será encaminhada a outros destinatários dedicados à memória histórica. Cordialmente, Claudio Leal, jornalista."